segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O FÍGADO INDISCRETO

Por José Bento Monteiro Lobato


Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas, avermelhava, saía fora de sí e permanecia largo tempo idiotizado.

O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.

Inácio barbeou-se, laçou a mais famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento - e daí proveio a catástrofe...

Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus a um possível futuro parente.

Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo, um tanto desmontado com o papel de galã à força, que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha de requintada malicia, muito "saída" e "semostradeira", interpelou-o sobre coisas do coração, idéias relativas ao casamento e também sobre a "noivinha" - tudo com meias palavras intencionais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda.

Inácio avermelhou e tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia: Quando os doces, Sr. Inácio?

Respostas mascadas, gaguejadas ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.

Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. A culpa aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um bife de fígado sem consulta prévia.

Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.

Esquisitice do Inácio: nasceu com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em fígado - seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.

Nesse dia, mal dona Luiza o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo. Mostrou-lhe que mal momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalma-lo a goles de Clarete, jurando eterna abstenção para o futuro, Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar, de olhos arregalados, a revolução intestina.

Em redor a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o suplicio daquele mártir, posto a tormentos de uma nova espécie.

- Você já reparou, Miloca, na "ganja" da sinharinha? Disse uma das moças. - Está como quem viu o passarinho verde. E olhou de soslaio para Inácio.

O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava nas vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento. Era mister ataca-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e - um, dois, três: glup! Lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.

Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo rumores do mundo, seu cérebro voltava a funcionar normalmente, e seus olhos volveram outra vez as visões habituais.

Estava nessa doce beatitude, quando:

- Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado, disse-lhe dona Luiz, vendo-lhe o prato vazio - repita a dose.

Fora de si outra vez, o pobre moço exclamou, tomado de pânico:

- Não! Não! Muito obrigado!...

- Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos. Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se péla por uma isca.

- Iscas são comigo, confirmou o velho. Lá isso não nego, com elas ou sem elas, nunca as injeitei. Tens bom gosto rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luiza.

E não houve salvação! Veio para o prato de Inácio um novo naco - este formidável, dose dupla.

Não se descreve o drama criado no seu organismo, e disfarçadamente ele aguardou o milagre.

E o milagre veio! Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e mete-lo no bolso.

Salvo! Nem dona Luiza nem os visinhos perceberam o truque - e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.

Antes da dançata, lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.

- A festa é sua, doutor. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de Bilac.Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Quer decerto que a Sinharinha insista?... Ora, até que enfim! A douda de Albano? Conheço sim, é linda, embora um pouco fora de moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano... assim...

Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano, onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a douda de Albano.

Pelo meio dessa hecatombe em verso, ali pela quarta ou quinta estrofe, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço, vem o fígado, que faz... plaf! no chão. Uma tocida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras do instinto, salvam o lance.

Mas desde este momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lhe pedisse. É que lhe acorrentava àquele posto o implacável fígado!

E Inácio recitava. Recitou sem música: "O navio negreiro", "As duas ilhas", "Vozes da Africa", "O Tejo era sereno"

Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou "O corvo, de Edgar Poe, "Quisera amar-te", "Acorda donzela", citou poemetos, modinhas e quadras .

- Nun canto da sala Sinharinha estava, chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?

Inácio firme. Completamente fora de si, e farto de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas. E declamou " As armas e os barões", "Estavas linda Inês", "Do reino às rédeas leve" - tudo!...

. E esgotado de Camões, ia lhe saindo um "Ponto" de filosofia de direito - A única coisa que lhe restava na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, deixando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera exposta!

Adeus casamento, adeus terra, porque Inácio teve que se mudar dali, pois o malvado capitão Lemos espalhou por toda a cidade que Inácio era, sem dúvidas, um bom rapaz, mas com um grave defeito: Quando gostava de um prato, não se contentava em comer e repetir, ainda levava escondido no bolso o que podia!

5 comentários:

G I L B E R T O disse...

Minhas queridas e meus queridos!


Para quem não conhecia a veia cronista de Monteiro Lobato eis um bom exemplo, um conto/crônica de excelente bom humor, um dos que mais gosto dele.

É um pouco extenso mas quem se atreveu a ler, certamente, teve diversão perfeita.


Quanto a mim, pela segunda vez nos ultimos dias meu PC foi para formatação, voltou e deu problema na fonte, continuo minha odisséia por lan houses da vida... TRabalhar em lan house é o fim!

Depois, conto minhas aventuras nestas casas de alugueres de máquinas!

Beijos e abraços em todas voces, minhas queridas, grato pelo carinho e paciência que estão tendo comigo! Se tudo correr dentro do prognóstico que fiz, quinta feira a tarde estarei livre e começarei a visita-las novamente e, até la, meu velho PC cansado de guerra estará com um pulmão novo (vou comprar a fonte amanhã)...

Beijos e beijos!
Suas saudades são minhas saudades!

Anônimo disse...

Não conhecia.
Muito bom!
bjs.

Regina disse...

Gilberto, querido!!

Ri à beça aqui, com esta crônica de Lobato! A gente lê e as imagens vão surgindo todas em nossa mente, tamanha a habilidade com que ele descreve as situações!

Parabéns pela escolha!

E meus votos de boa recuperação do seu PC!! rsrs...

Fique sempre bem, meu amigo! Com, ou sem PC!!

Beijo, boa semana!!

Glorinha L de Lion disse...

Querido amigo, que saudade!
e não podia ter escolhido melhor, embora já tivesse lido, esse conto de Lobato! li, na juventude e nem me lembrava mais do desfecho...um gênio, esse inventor da Emília!
Beijos

Unknown disse...

kkkkkkkk