quinta-feira, 12 de julho de 2007

O REI NEGRO E O DIVINO BRANCO

O tempo desta história não existe e se existe, existe apenas na cabeça daqueles que sonham, tempos onde camisa e jogador se confundiam.
“Seo” João sempre foi uma pessoa apaixonada pelo futebol, pelo bom futebol, cresceu santista, fascinado pelas jogadas do Rei Negro.
Eu era guri quando ele me contou esta história, e seu entusiasmo ao contá-la, só não foi menor que o meu, ao ouvi-la.
Ele não acreditava na história de que havia no Palmeiras, um branquelo que jogava tão bem quanto a Pelé. Diziam que ele era mágico, pois apesar de lento, desafiava tempo e espaço e sempre chegava na frente; era habilidoso com a bola nos pés e o maestro de todo o time da Academia – diziam até que seu apelido era divino. “Seo” João achou uma heresia dar o nome de divino a um mortal, e, ainda mais, um qualquer. Somente Pelé merecia tal distinção. “Seo” João, incrédulo, disse-me que sorria destas invencionices.
Um dia, o Palmeiras veio com o time todo da Academia jogar numa cidade próxima a do “Seo” João, e ele foi lá: “Vou ver com meus próprios olhos se esse branquelo joga alguma coisa mesmo!” Ia armado de uma sacola de críticas pré-concebidas, o olhar treinado para depreciar qualquer jogada de Ademir; as palavras todas ensaiadas para uns xingos. Ademir já entrava em campo condenado previamente pelo “Seo” João, ele confessou-me isso.
A partida começou, o time da casa derrubava suor e sangue para marcar os guerreiros verdes. Com poucos minutos de jogo, Julinho escapou pela direita e deu um centro para a grande área, Vavá olhou fixamente para o capotão e no momento certo subiu testando forte, a bola explodiu no travessão e voltou para o meio da grande área. O zagueiro assustado, mirou para onde o nariz estava virado e deu uma bicuda para o alto, no velho estilo Viva São João, expulsando o perigo de gol eminente. A bola subiu feito um foguete, conta “Seo” João, o brilho dos olhos ainda guardando toda a admiração original e foi em direção ao meio campo, indo na direção do tal branquelo. “Seo” João disse que sorriu naquele momento, antevendo um fracasso no movimento de Ademir da Guia. “Esse ai!” pensou, “Não vai saber o que fazer com a bola!”.
Ademir no meio campo era uma estátua em mármore. Olhou para os lados, parecia onisciente, parecia controlar tudo a sua volta, o movimento do ar, o tempo da bola, seus traços estavam impassíveis quando dominou “o couro” que caia em velocidade vertiginosa. Ele ergueu a perna direita e a bola desceu colada aos seus pés, acariciada. Ela ficou quietinha à sua frente, falou-me “Seo” João. Nunca havia visto algo parecido. A bola não tinha vida própria, obedeceu ao homem e ao seu comando como se somente a ele pertencesse. Aquela matada, nem Pelé faria igual. Depois, driblou o primeiro marcador, tocou para Servilio que devolveu prestativo. Ademir era soberano, o estádio todo em silêncio, escutava-se as suas pisadas leves no gramado. Meteu um chute em rosca e a bola morreu no canto superior direito do goleiro que esticou-se todo e pulou como um gato. Mas não tinha jeito, a bola era de Ademir e somente a ele obedecia. Um golaço!
“Seo” João ficou em silêncio por um momento, seu olhar entretido com as lembranças que acariciavam sua consciência e sentenciou: Ademir da Guia era divino...pertencia aquela classe de jogadores que entendiam o jogo e o dominavam. Se houve um dia em que eu me arrependi de ter entregue meu coração ao Santos, foi naquele, diante daquele time esplendoroso. Daquele jogo em diante, o coração continuou pintado em preto e branco, mas lá no fundo, um pedacinho ficou verde e sempre ficou!
Fui-me embora, sonhando com tempos que não mais existem, e se existem, existem somente na cabeça daqueles que sonham.... Orgulhoso de ser palmeirense! Obrigado “Seo” João!!!

terça-feira, 3 de julho de 2007

O HOMEM DO JARDIM


Uma rosa floresceu com a alva, toda oferecida para flertar com o orvalho. O jasmim, de noite, enamorado da lua perfumou-se todo para chamar sua atenção. A grama vestiu seu traje mais reluzente. Os pingos d’ouros asseados, unhas bem cortadas, eram as muralhas a guardar o harém florístico. Um reino em flora a esperar seu senhor!
E quem era o senhor daquele jardim?
Quem era o homem que com seu toque de Midas para a natureza, acariciava as rosas e beijava as tulipas, conversava demoradamente com as margaridas, flertava com as hortênsias e cochichava segredos para os cravos e afiava as espadas de São Jorge?
Quando no jardim, era um homem delicado e dedicado. Amava aquele ofício que transcendia as questões de remissão de pena. As plantas mostravam-lhe o quanto era importante, o quanto ele era necessário. As plantas o amavam, e ele amava as plantas – um amor entregue, sem sacrifícios fúteis, buscas oportunas ou pedidos interesseiros, o amor pelo amor, simplesmente.
Porque, na verdade, detestava o amor dos homens. Amor insano, imperfeito, de duplas intenções. Os homens davam e pediam algo em troca: sua vida; sua submissão; às vezes, sua honra; sua dignidade, sempre.
No jardim, entretanto, as manhãs eram festas plenas. As plantas esperavam-no como aguardavam o sol, com sua melhor roupa, com seu melhor aspecto, com o melhor dos eflúvios.
No jardim entre as plantas, sentia-se importante. Sua decisão era respeitada e acatada, pois todas elas sabiam que tudo o que ele fazia era para o bem delas. Uma democracia, que funcionava de verdade, onde a maioria era privilegiada e jamais, jamais, deixou que suas vontades pessoais sobrepujassem o interesse do jardim. Como poderia? Ele era parte do jardim, a parte mais feia e, ainda assim, com sua importância. Ele aprendeu isso no jardim, na natureza que o rodeava. Somos todos partes de um grande ser chamado PLANETA TERRA e todos nós somos importantes, todos precisamos uns dos outros para sobreviver, ninguém é mais importante que o outro.
Os homens não entendem dessas coisas, os pulhas!
Mas não queria mais pensar em homens. Eles não têm a pele aveludada como as rosas e suas pétalas; seus cheiros são fétidos; não possuem cores vibrantes. Seres desprezíveis, os homens. Alguém lhe disse que na biblioteca da cadeia tinha um livro que falava de um homem que ao acordar pela manhã havia se transformado em um inseto. Isto! É isto que os homens são, insetos!
De repente um grande barulho de portões se abrindo tira-o de seus pensamentos. Surge por entre a muralha de ferro uma linda jovem. Ela sorri e o cumprimenta gentilmente.
Ele retribui o sorriso, corta uma linda rosa e a oferta para a moça. Ela agradece, educadamente, e vai embora algo satisfeita com o mimo.
Ele deixa o olhar entreter-se nela até perder-se com ela nos corredores da Unidade Penal. Ele controla um impulso... Selvagem... Um desejo a muito sufocado luta para renascer. Um desejo animalesco, que tira dele o que ele tem de pior, um desejo que somente aplaca-se com sangue...sangue alheio. Os homens são mesmo desprezíveis, pensa, só servem para adubo. Uma rosa chama sua atenção, volta-se por completo ao jardim...enquanto isso, algo dentro dele se acalma...se acalma...adormece...e dilui-se junto com a água que irriga o belo jardim da cadeia.