quinta-feira, 25 de outubro de 2007

VIDAS ENQUADRADAS – Parte I

por Daniela Kopsch, direto de Curitiba/PR

Uma noite nunca é silenciosa no centro de Curitiba. Quando o barulho da rua parece diminuir e ouve-se apenas eventuais sirenes, é o vizinho que briga com a mulher ou o bebê que chora. É à noite que todo som tem um significado diferente, uma história a ser contada. A causa da sirene, do choro, da briga.
Em frente à minha janela tem um prédio de dez andares de janelas amplas. A maioria dos apartamentos não tem cortinas, o que os tornam palcos para uma pessoa curiosa.
A primeira janela mostra um casal assistindo TV. Mesmo com a luz apagada, a televisão ilumina a sala com um tom azulado que vai variando e absorve a atenção dos dois. Não pronunciam uma palavra. Parece que já não há mais o que desperte curiosidade um no outro. Acabou o motivo da conversa, a não ser que o programa seja mesmo muito interessante.
Na janela ao lado há vários jovens ao redor de uma mesa. Talvez joguem baralho ou algum jogo de tabuleiro. Enquanto um deles pula e parece gritar, o som de “truco” quase chega aos meus ouvidos. Somente em dois andares abaixo encontro movimento. Uma moça alta vestindo pijama anda pelo apartamento sem parecer muito ocupada. Me identifico de imediato. Sempre sozinha e sempre vagando pelo apartamento em busca de ter o que pensar. Logo ao lado há outra mulher, gorda e com idade avançada. Parece nervosa teclando num computador. Imagino se seria uma profecia do futuro da jovem de pijama. Sozinha teclando com alguém que acredita falar com uma loira, alta, de olhos azuis e 20 anos. Mesmo assim ela ainda pode estar só digitando uma monografia.
No último apartamento com movimentação há dois rapazes na janela. Possivelmente entediados. Provavelmente vendo a luz vermelha da minha câmera. Talvez pensando o mesmo que eu. Observar a vida de outras pessoas enquadrada pela câmera é muito útil para quem não tem mais o que fazer, ou não quer enfrentar o que tem dentro da própria janela.


Post Scriptum: Foto: Tela de Salvador Dali

"Obra de arte em imagem emoldurando uma obra de arte em texto"

VIDAS ENQUADRADAS – parte II


(a partir de um pensamento de Daniela Kopsch)

A cadeia é silenciosa a partir de algumas horas da noite, e este silencio é ainda mais angustiante que a algazarra e os alvoroços do dia. A cadeia dói na alma dos presos, durante o dia, mas dói muito mais durante a noite, quando os pensamentos dos internos se elevam para deuses surdos, quando seus olhos se voltam para horizontes limitados, quando seus ouvidos escutam apenas o som de suas próprias lástimas.

Estou atento em meu posto, nestes instantes. Sou um dos atalaias que vigiam, que tenta filtrar deste silêncio os sons que denunciam os maus pensamentos. Sou feito para que seus deuses continuem surdos, para que seus horizontes continuem ainda mais limitados e, se der, que as lástimas sejam atenuadas ou substituídas. Na clausura, as novas lágrimas parecem ser menos sofridas que as antigas.

Na cadeia, tudo é quadrado. Prédios quadrados, janelas absolutamente quadradas, vidas enquadradas, sentimentos quadrados, se é que me entendem? Num desses eqüiláteros, um homem fuma seu cigarro demoradamente, absorto no tempo, o tempo esquecido dele. Em um outro, um jovem (juventude perdida!) grita uma blasfêmia qualquer, o eco parece devolver o xingamento – Deus! Nem mesmo os ecos respeitam essa gente! Um estuprador derrama uma lágrima, depois da milionésima, na cadeia, eles são santos e castos. Em outro enquadramento, o homicida arrota sua arrogância, num reino que cultua a violência eles são reis.

Em outro quadro, alguém assovia uma triste canção. Parece querer que o som espante sua tristeza. A infelicidade é feita de silêncio, a alegria necessita de som para sobreviver. Aparências, nada mais que aparências, elas são necessárias neste lugar, sobre elas estão as bases desta consciência enclausurada.


Um espelho salta para fora de uma janela e busca a mim em seu reflexo. O reflexo me vê, atento, vigilante. O espelho se vai, frustrado, recolhendo-se para uma outra oportunidade.
Não será ainda desta vez, eu penso!
Não será ainda desta vez, eles pensam!
E a vida de todos nós continuará enquadrada por mais algum tempo!

sexta-feira, 12 de outubro de 2007

BREVE FILOSOFIA SOBRE VIDA E FUTEBOL


Futebol sempre foi uma coisa importante para mim. Sei disso porque ele nasceu em minha consciência antes mesmo que ela própria. Como se explica numa família de santistas fanáticos eu nascer palmeirense, sem qualquer incentivo, sem qualquer história que explique essa paixão. O Palmeiras nasceu em mim antes da própria consciência. E, por amá-lo tanto, transformei as peladas no meu grande divertimento de infância. Elas aconteciam em todos os lugares da pequena cidade. De repente, era sempre a mesma história, aparecia um vindo não se sabe de onde, trazendo uma bola debaixo do braço, chegava outro e outro, e uma pequena multidão de guris alvoroçados se formavam em torno da bola e de seu soberano, o proprietário – nestas horas, a bola era uma Julieta e a gurizada duas dezenas de Romeus sedentos de amor por ela.
Eu sempre estava pelo meio, futebol nasceu em mim, já disse, antes de outros prazeres. Esse fantástico jogo me ensinou a ver a magia e a arte que existe no jeito de viver. Muitos valores aprende-se ao se jogá-lo e eu os entendi todos num primeiro momento, quando abracei uma dezena de amigos valorosos depois de fazer meu primeiro gol. E meus gols eram raros, nunca fui o craque que foi o Ademir da Guia ou o Evair, compensava a falta de habilidade com determinação e transpiração. Era uma espécie de Dudu do time, bastante piorado. Em nenhuma outra área da vida, acreditem, a transpiração pode compensar a falta de inspiração, somente no futebol, talvez por isso seja tão apaixonante. Em nenhuma outra parte o suor pode ser comparado à técnica e a magia, nenhuma outra coisa inventada pelo homem é tão democrático: pretos e brancos são rigorosamente iguais; ricos podem valer menos que pobres; o baixo tem tanto valor quanto o alto; e um gorducho pode ser o melhor do time.

A vida devia ser feita do jeito que se faz dentro de um campo de futebol, com suas regras simples, oferecendo as mesmas possibilidades para todos, onde a competência determina realmente o vencedor e onde as armas de cada time, ainda que inferiores as do adversário, podem ser suficientes para que se atinja os objetivos: a vitória. A vida devia mesmo ser igual a um jogo de futebol....O tempo já vai longe e as “peladas de futebol” ficaram para traz em minha vida real, mas eu as revivo todos os dias, quando recosto a minha cabeça num canto qualquer e fecho os olhos por um momento, então, eles surgem todos, vindos de dentro de meu coração saudoso, velhos amigos que comigo derramaram suor e alegria sobre campos de terra. Lembro da velha camisa do Palmeiras bastante surrada, um velho calção branco encardido de tanto se esfregar no chão, e o coração sorrindo feliz por amar o Palmeiras e o futebol.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

DOZE ALVORADAS E UMA DÚZIA DE CREPÚSCULOS

A cadeia possui seu próprio tempo, tempo sem hora, hora sem tempo, letargia das horas, um lugar onde a relatividade não exerce sua força de lei, a cadeia é um lugar onde um segundo vale por sessenta, para mim, para você, para todos nós, feito marionete nas mãos de deuses preguiçosos que se divertem na platéia desse grande teatro.
Porque o tempo somente encanta quando embebido na liberdade, quando você o enclausura dentro de um limite, ele perde seu sabor de néctar dos deuses e ganha um gosto amargo de fel – o fel das grades, de clausura, da grande e inativa espera pela liberdade.
Ah, Liberdade! Disseram que és um delicioso vinho que as pessoas não sabem sorver com recato e se perdem imiscuídas em seu sabor encantador, embebedando-se.
Oh, lugar estranho! Seus dias são desleais! És um mundo de obscenidades, de bizarrices inexplicáveis, suas doze alvoradas rompem sua placenta de ferro marcando as duas únicas horas de um dia de sol, uma dúzia de crepúsculos marcam uma noite de vinte e duas horas sem estrelas. No sol ou nas trevas, o único companheiro dos habitantes desse universo é o sonho, o sonho de bebericar desse doce vinho, fermentado em seus próprios sonhos, envasado no barril de seus desejos. Sair...voar para a realidade!
E todos eles têm medo da realidade, mas como ela é atraente, essa grande e bonachona meretriz! Serve-os em seu cálice de enganos o doce vinho da liberdade e convida-os para fazer amor, tolos, tolos, tolos aqueles que se enredam nestas armadilhas, o destino é realmente o maior de todos os engodos.
Quais sonhos que restaram para eles sonharem?
Esta prostituta levou todos eles....o que farão com sua taça de vinho?
Oh, lugar ingrato! És um limbo no tempo, és um universo paralelo, suas horas são contadas através de rotinas, um mundo órfão de mãe e pai, um templo para um Baco segurando a sua taça de vinho inebriante estendendo-a de forma zombeteira num oferecimento depravado e fácil sem nunca entregar...Sorria, Baco, gargalhe enquanto podes. Um dia a taça lhes será entregue e então, eles voltarão para a realidade, para fazer amor com esta concubina de toda a humanidade. De alguma forma, então, serão novamente senhores de seu tempo (e o tempo tem senhor???) e o tempo ganhara o seu poder de relatividade, como deve ser, com os segundos tendo o seu tamanho exato, uma alvorada e um crepúsculo num dia de vinte e quatro horas, sem a quantidade de auroras e ocasos do mundo da cadeia, mas com a poesia que esses momentos oferecem.
Talvez esteja ai a grande receita para sorver o vinho da liberdade – um gole pela manhã, outro a noite, com equilíbrio constante. A liberdade é uma bebida como outra qualquer, tem de ser bebida com moderação. E ao aprender a beber deste vinho, aprenderão que a realidade não é assim tão vadia, ela pode amar com a dedicação e a fidelidade de um grande amor.....