sábado, 23 de junho de 2007

PRIMEIRAS IMPRESSÕES SOBRE A CADEIA

Como sempre, lá estava ele, em seu posto, atento. Olhava a tudo e a todos, em suas celas, todos os movimentos dos reclusos cuidadosamente estudados. Observava um velho senhor negro, cabelos brancos, tomando um banho demorado, ensaboando-se com tamanha vontade que parecia querer tirar todos os pecados do corpo com água e sabão. Na cela inferior, um jovem mal-encarado fumava absorto, pensando na vida, tentando encontrar outros culpados para pecados exclusivamente seus. Em um outro cárcere, um rosto apareceu na janela e gritou uma blasfêmia qualquer. Desabafava suas agruras e tristezas para si próprio, para todos os deuses surdos que o escutava. Um outro qualquer comia o restante do conteúdo frio de sua marmita com relativo prazer, na cadeia a fome é o melhor tempero.
A cadeia é silenciosa à noite, a melancolia monta guarda na madrugada da penitenciária. Pode-se ouvir os passos dos agentes no grande corredor central, o guinchar dos ratos no jardim, os sons da longa noite de insônia dos prisioneiros. Pode-se descortinar alguns sorrisos aqui e ali, mas não se pode dizer que há alegria suficiente neles para mover os moinhos da felicidade. Sorri-se, invariavelmente, para esquecer a dureza de um ambiente onde todos na verdade gostariam de estar longe. A cadeia é um local de aparências, cortinas abstratas escondem as verdades que estão sepultadas nestes endurecidos corações humanos. A tristeza veste sorrisos fantasiando uma alegria que não existe. O ódio dissimula-se com a rotina e a disciplina. A liberdade fica em “stand by” aguardando em forma de crisálida para nascer como borboleta, com o abrir voluntário dos portões; ou romper o casulo de forma furtiva como uma mariposa fugitiva. O diálogo surge como intruso quando as facas são forçosamente trancafiadas nos “mocós” de lares que não são doces.
A cadeia é um lugar de aparências, a tranqüilidade é uma visita agradável ansiosamente aguardada, mas que todos sabem que tem hora para ir embora. As cortinas são obrigatórias na cadeia, são elas que de uma forma artificial sustenta a tranqüilidade. Tudo são aparências na cadeia, aparências.....reconhecer isso e lembrar-se permanentemente disso, é manter-se vivo.
E como sempre, lá estava ele, em seu posto, atento. Olhava a tudo e a todos, percrustando, tentando divisar algum movimento ilícito, alguma atitude impensada, alguma ação não permitida. A cadeia é um organismo vivo que contamina todos os que nela adentram. Ele viu seu coração, percebeu um lado resistente, ainda resplandecente; o outro negro, corrompendo-se com esta realidade trancafiada em grades. Desde o dia em que conheceu a cadeia e seus devaneios de megera, suas dores não eram mais tão doídas, sua alegrias não mais tão prazerosas, perdeu-se nele a humanidade. O sofrimento alheio era uma realidade, e a realidade é feita para manchetes de jornais, não para os frontispícios do próprio cotidiano.
Alguém apareceu, rendeu-o em seu posto, a vida continua na madrugada gelada da cadeia. Olhou uma última vez para as cenas solitárias de todas as janelas das celas que encenavam dramas particulares, solitários e comuns a todos os internos. De algum lugar viu brotar novamente a poesia, de algum lugar em que a havia esquecido, no passado, sufocada por sua covardia em não querer encarar sua própria humanidade. Ela ainda sobrevivia, sentiu um alívio por isso. Sentiu compaixão por aqueles seres humanos....sentiu compaixão por ele próprio. O agente ainda era gente, afinal, gente....

quinta-feira, 21 de junho de 2007

O Senhor de toda a gratidão

Tinha acabado de fechar o portão que dá acesso para as galerias de internos no interior do Pavilhão, quando se aproximou de mim um jovem, e ficou por ali marcando tempo, com aquela expressão perdida e despreocupada daqueles que sabem qual será a sua rotina diária pelos próximos muitos anos. Uma grade nos separava – ele para o lado dentro, eu para o lado de fora –, me olhou, percebi que esperava um momento adequado para se aproximar – a cadeia é mesmo assim, fica muito caro o preço a pagar quando se escolhe o momento errado em qualquer coisa, a cadeia desconhece o perdão e sempre cobre suas dívidas.
- Eu me lembro do senhor!
Disse após tomar a certeza de que era o momento certo.
(Quando é o momento certo?)
Fiquei em estado de alerta.
- Desde o dia em que eu cheguei aqui, eu me lembro do senhor!
Revirei todas as gavetas da memória, tirei o pó de algumas coisas que estavam lá no fundo do grande baú de lembranças, sacudi o tapete das reminiscências, até investiguei algumas chateações que estavam depositadas no grande arquivo morto da inconsciência, mas que.... Nada do rosto do sujeito aparecer. A cadeia tem dessas coisas, você se esquece do interno, o interno jamais esquece de você.
Como me mantinha em silêncio, estratégia encampada para entender a situação, ele insistiu.
- No dia em que eu cheguei, a minha Bíblia caiu no chão. O senhor a pegou e me entregou.... Nunca esquecerei disso!
Neste instante, houve luz em minhas lembranças. O rosto tristonho do sujeito, suas coisas espalhadas pelo chão depois da revista, o seu medo no olhar, o Livro Sagrado no chão.... no chão....
Senti sinceridade nas palavras dele e senti que aquela era a forma que ele sabia, ou encontrou, para me dizer Obrigado!
Sorri de uma forma circunspecta, a cadeia é um lugar que algumas manifestações emotivas devem ser suprimidas, e respondi sóbrio:
- Veja bem! Lembre-se sempre do Senhor e tudo estará bem, para mim e para você.
Eu me afastei, fui cuidar de outros afazeres e lá, de onde estava em meu posto, pude vê-lo uma vez mais, a um canto qualquer, meditando, olhando para mim, seu olhar atravessando as grades. De certa forma, fiquei assustado, era a primeira vez que a gratidão me visitava na cadeia.

domingo, 17 de junho de 2007

UMA QUIMERA E MIL SACIS

Depois que a cadeia fecha, o silêncio toma conta das galerias. Apesar das muitas luzes, o ambiente ganha tons lúgubres. Aqui ou ali se ouve um grito qualquer, um preso chamando outro; outro grito de um louco buscando sanidade no horizonte trancado dos muros; um louvor ao Deus de todos nós, um louvor triste que soa como um lamento; uma oração, dez orações, cem orações; um delinqüente solitário olhando para o grande olho da lua, pensativo em mil patifarias; um bandido sentado agarrado às grades, os pés para fora, balançando-se ao sabor do vento fresco da noite, grita, esperneia, xinga, chora e ri, tudo sozinho, com ele mesmo, ele e a droga maldita que toma conta de sua consciência atrofiada. Mas, o silêncio está ali, presente, constante, como se fosse um ente, um ser vivo, dá medo o silêncio da noite na cadeia, o silêncio de mil homens trancados, liberdade sufocada pela força do aço das grades, o silêncio na cadeia é calmaria que antecipa as tempestades.
De repente, sobem os agentes, a polícia da cadeia, os coletes, os cinzentos, indesejados por uns, odiados por todos; a quimera agita-se, se contorce num espasmo, rompe-se a placenta do silêncio e surge um assovio longo e agudo formado por um coral de mil sacis. Fiu... Fiu..... Fiu..... O alarme está dado, os agentes vêm chegando, é hora de sufocar os gritos, de esconder os radinhos[1], guardem as facas, tome logo este último gole de Maria Choca[2], tapem os mocós[3], a polícia vem vindo.... Vem vindo!
Apesar da calmaria, a cadeia nunca dorme inteiramente, ela é um monstro, uma quimera de mil corações, mil pares de olhos, mil olfatos e têm mil vidas para serem desperdiçadas. A cadeia nunca dorme, tem sempre um olho acordado para vigiar, atalaia patife e insone, um saci para acordar os outros sacis e soar o grande coral de alarme da cadeia. É impossível colher a grande quimera desprevenida, não há formas de emboscá-la em seu habitat maldito ou vacilando no seu eterno plantão; ela está sempre atenta com seus mil pares de ouvidos que escutam tudo e em toda a parte.
Os agentes chegam e fazem seu trabalho, rotina ou extraordinário, não importa, em todas as boquetas[4] olhares rompem a noite, atentos, analisando, odiando, tecendo mil maldições... Maldições das sentinelas sacis... E de todos os demais demônios!
Será que maldição de saci pega?
Os agentes vão embora, despreocupados, rindo de alguma mula[5] qualquer... Talvez seja essa a grande vacina para as maldições dos sacis e de todos os demônios que habitam as entranhas desta quimera... O bom humor!
De repente, as risadas e os passos vão ficando distantes no corredor, um fechar de cadeado, de dois cadeados, mil cadeados trancados... O silêncio retorna ao seu descanso vigilante, a cadeia retorna a sua rotina – o que é patifaria retorna para o esgoto onde vive; as orações retornam cheias de fé e de tristeza, a fé é maior dentro da cadeia! O silêncio é mesmo democrático na cadeia, a quimera suporta a oração com a mesma apatia com que ouve as maldições.
Não se ouve mais os agentes, seus passos, suas chaves, suas risadas, suas preocupações, todas as maldições de um ofício que desconhece bênçãos foram-se com eles.... Só se ouve o silêncio... O silêncio e todas as suas malditas possibilidades.....
Dormem os sacis, por enquanto!



[1] Celulares.
[2] Aguardente artesanal fabricada na cadeia (de forma ilícita).
[3] Esconderijos ilícitos dentro das celas ou nas dependências da cadeia.
[4] Pequena janela colocada na porta da cela.
[5] Zombaria, picardia de cadeia.