sábado, 16 de novembro de 2019

O CEGO VOO DO ÍCARO



Cadeia faz coisa...
Essa é uma frase recorrente no reino dos cadeados.
É um eco...
Um eco com vida própria que surge toda vez que a monotonia é quebrada, que o extraordinário agita o organismo da quimera.
Aquele era um dia normal dentro do primeiro pavilhão.
A megera estava adormecida...
Normal ali, entende-se, como uma rotina sempre nervosa, agitada, entra e saí de presos, muitas celas abertas derramando muitas vidas na corrente sanguínea do raio.
Pavilhão de trabalho é assim mesmo – sempre frenético. Tranquilo encima das águas, por baixo, as águas rugem.
Do atento olhar do policial penal, nada ficou esquecido. Não vou sublinhar tudo porque sugere o bom senso que o tudo é algo estranho, abstrato. Tudo, somente Deus. E, lembrem-se, que por baixo da superfície da cadeia as águas são turbulentas...
A manhã era preguiçosa.
Um preso tecia uma rede de pesca, outro cuidava das mercadorias da pequena cantina. Uma mariposa, mulher de cadeia, entrava furtivamente numa cela e todos fingiam não ver, mas todo olho dentro do pavilhão viu. Dois homens carregados de janeiros caminhavam pela quadra de esportes, naquela manhã surpreendentemente esquecida. Um índio tomava um chá frio. Dois índios comiam pães adormecidos. Três índios tomavam tereré.
A manhã era mesmo preguiçosa...
De repente... a quimera tem um espasmo... a casca frágil do extraordinário se quebra e eclode junto com o parto do fora do comum um grito do agente: “Tem alguém encima do telhado!”
Todos buscam o telhado, mil olhos procurando o desconhecido e todos conseguem ver, um preso vindo por cima do telhado, desembalada carreira, em direção do precipício de uns sete metros que desembocava na dura quadra de concreto dentro da entranha do monstro.
“Estranho...” pensou o policial penal, “o preso não corria para fora, ele corria para dentro da cadeia...”
Começa uma correria por todos os lados dentro do pavilhão.
Presos pensam numa mesma frequência.
Alguém joga um velho colchão no chão duro da quadra, no mesmo instante, o corpo do preso se estatela no concreto da quimera. Nunca falei antes, a pele do monstro é de concreto.
“Ele se jogou lá de cima”, alguém sugeriu o óbvio.
Os presos se ajuntam, recolhem o caído como se ajuntassem cacos do mais fino cristal e com excesso de cuidados levam até a área de segurança onde é retirado pelos policiais penais para as providências de emergência e hospital.
Nas grades de segurança, dezenas de rostos se colam ao frio aço das grades tentando entender o motivo de alguém querer se matar assim... assim... ou de qualquer outra forma...
Presos pensam numa mesma frequência, como se ouvisse o questionamento íntimo de todos, um deles responde:
- Cadeia faz coisa...
E um coral de vozes assustadas responde em uníssono:
- Cadeia faz coisa...
Enquanto isso, uma vida quebrada é levada urgente para o hospital.