quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

QUANDO AS PRIMAVERAS CHEGAM...


Já faz algum tempo que não escrevo nada.
Essa esterilidade momentânea não é rara e os motivos podem ser os mais diversos, entretanto, não irei acariciar nenhum deles neste dia, minha atenção abraçará a história que sobe neste palco branco, história que é admirável por natureza.
Todos os motivos se tornam esquecidos quando a gente aprende a colocar nossos olhos nas belas coisas da vida, assim se fabrica a poesia no viver, os poetas mais extraordinários são os sábios, aqueles que sabem como olhar as coisas todas em sua volta.
Porque se eu não souber olhar, a cruz será apenas madeiro, jamais sacrifício de Deus por amor ao homem.
Se eu não souber olhar, a salvação terá que ter um preço a pagar e nunca será graça, apenas graça.
Se eu não souber olhar, o outono será apenas a estação das folhas, nunca a expectativa da primavera.
Se eu não souber olhar, letras serão apenas rabiscos em uma folha, jamais palavras.
O que torna esta história mais interessante é que ela não me chegou por meio do olhar de poeta. Ela me foi abençoada através de um ouvido atento. Gosto de ouvir as pessoas, me comunicar com elas, saber o que pensam sobre a cruz, como enxergam a salvação, enfim, saber o que são para elas outonos e primaveras.
Um homem contou-me estes fatos acerca de sua própria mãe que aos 73 anos ainda não sabia ler. Letras para essa senhora eram outonos, nunca foi primavera. Para quem sabe ler, as palavras  são flores oferecidas num buque de texto; para quem o ler é um universo desconhecido, palavras são apenas folhas dispersas no chão do papel.
Um dia, sua esposa, iluminada pela poesia da vida, tomou uma cartilha qualquer e untou-a com boa vontade e doses generosas de amor e dedicação e começou a alfabetizar a sogra. O dia que a velha senhora descobriu o “A” foi glorioso; o “I” foi ainda mais especial – o I a lembrou da sua igreja.
Com muita perseverança e carinho as letras foram mostrando suas faces à velha senhora e ela as foi conhecendo pelo nome e se lhe tornando intimas amigas.
Um dia, quando começou os ajuntamentos das letras, ela conheceu o êxtase – enfim, era apresentada as palavras.
No dia em que aprendeu a escrever seu nome, ela chorou.
A maior revelação de sua vida, contou para o filho, foi o dia em que conseguiu ler João 3.16 por sua própria conta – finalmente entendia o que era o amor absoluto.
O apogeu foi no banco, quando foi renovar seus papéis de aposentadoria. A atendente que já a conhecia, retirou de uma gaveta uma velha e suja almofada onde, por tantas e tantas vezes ela esmagará o dedão. Em vez disso, solicitou uma caneta e, para espanto e alegria da moça, assinou seu nome.
Naquele dia, a senhora sentiu-se gente de verdade e desde então leu tudo o que pode até o dia de sua morte, quatro anos atrás.
As coisas são mesmo assim...
A vida é mesmo assim...
Alguns olhares quando colocados sobre as palavras são apenas outonos.
Alguns olhares, quando sabiamente treinados, sobre as palavras são jardins de flores nas primaveras.
Aquela senhora na maior parte de sua vida conheceu apenas outonos, até que um dia a poesia a visitou por meio de sua nora. Então, e somente então, conheceu a primavera da leitura; experimentou a poesia da transformação de sua vida, aprendeu definitivamente a ler o mundo com seus próprios olhos.


O HOMEM MAIS CHATO DO MUNDO


A cadeia produz uma espécie de preso que é conhecido como chato.
São presos que por sua própria natureza já possuem características cansativas no convívio social, depois que foram submetidos a anos e anos de drogas de tudo quanto é jeito e muita cachaça, zerou todo o bom senso. Se ele era chato, tornou-se muito, mas muito chato. Chato elevado a enésima potência.
Junta tudo isso com a abstinência e está concebido um quadro infernal.
O sujeito não consegue conviver bem com os outros presos, imagina com os agentes penitenciários.
Então, fica pulando de cela em cela; pavilhão em pavilhão, tentando encontrar alguém que o entenda ou que, simplesmente, tenha paciência com ele.
A paciência nunca entrou na cadeia.
Ela fica sempre lá na porta, aguardando as pessoas que se arriscam nesse universo.
Quando elas voltam, as pessoas, a paciência toma o seu lugar no assento do carro e segue fielmente as pessoas por todo o lugar que elas forem – nunca para dentro de cadeias.
A cadeia tem sua própria maneira de resolver as coisas, paciência não é o caminho.
O sujeito dessa história em seu tempo foi o homem mais chato do mundo.
Incomodava presos, polícia e os agentes penitenciários.
Ninguém o agüentava.
Quando estava em estado de abstinência de droga então, a coisa piorava bastante e o que era difícil ganhava contornos de insuportável.
Incomodou tanto, mas tanto que um dia, a grande cadeia não tinha mais lugar para ele.
Virará seguro em toda a parte, em toda a parte queriam o couro dele e a segurança penitenciária não tinha mais onde o colocar.
Cavará um poço tão profundo que foi necessário transferir ele para a capital.
Lá chegando, começou tudo do zero.
No seu caso, em vez de ir à frente, foi para trás.
Foi perdendo pontos, convívios, amizades, estabelecendo inimigos e desconhecido de afetos até que um dia, fecharam-se todas as portas para ele e uma nova transferência, desta vez para a maior cadeia da capital.
Lá já chegou indo para a solitária.
Antes dele chegou sua fama.
Um dia, de madrugada, uns presos saíram de sua cela e foram até a dele e o mataram de forma muito covarde.
Não teve gritaria.
Não teve ajuda.
Não teve nada.
A morte o visitou e o abraçou levando-o calado para o seu aprisco.
Lá viveria quieto e não incomodaria.
A morte também não tem paciência, ela não espera ninguém.
De verdade mesmo, ninguém se incomodou com ele.
Era um preso, era muito chato e tinha tantos inimigos...
Mas, na cadeia de origem dele, quando todos souberam tiveram um espanto... e isso passou num segundo.
Entre todos, alguém sofreu em silêncio a tristeza da perda desta vida incompreendida.
Era o mais chato entre todos os que pisaram naquela cadeia, mas a vida parece que não foi justa com ele, assim pensava este nosso amigo oculto.
Seus pensamentos foram interrompidos, um enorme bater de portas nas solitárias, era o novo candidato a homem mais chato do mundo realizando seu trabalho.
Este é concorrente forte, pensou enquanto se levantava e adentrava garganta adentro do enorme dragão.
A vida (e a morte) continuava...


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

DEPOIS DO MAIS TENEBROSO PLANTÃO...




  Mil cairão ao teu lado, e dez mil à tua direita, mas não chegará a ti. Salmos 91:7


... Saí como quem foge do estresse mais sufocante.
O que seria para você a coisa mais estressante?
Vivo tempos onde esta inescrupulosa legião chamada estresse lança suas garras sobre mim, vinda de todos os lugares, em todas as formas e jeitos, com força e aptidão macabra.
Naquele dia, entretanto, escapei...
O plantão foi daqueles que tudo aconteceu, onde tudo não é apenas uma figura de linguagem.
Vou desprezar de falar da condição de trabalho do agente, falar disso é como pregar no deserto: cactos e lagartos não entendem de problemas penitenciários.
É assim que me sinto.
Num deserto, cercado por cactos e lagartos. Pregando para um vazio que não me escuta... nem o eco devolve minhas palavras...
Quando ganhei o exterior e o sol bateu na minha face, minha pele abriu todos os poros.
O sol é mesmo mais bonito aqui fora.
Respirei fundo. O ar encheu meus pulmões e senti-me vivo, vivo, vivo novamente.
O ar quente da cadeia havia ficado para trás.
Nada de fugas, de assassinatos, de cobertores curtos para cobrir postos, de maldade humana, de possibilidades de motins e rebeliões; de gente que cospe uma gosma todos os dias no colete, uma gosma feita de indiferença e ausência de compromisso com as coisas mais básicas do sistema.
Antes do sistema, existe o companheiro.
Antes do companheiro, devia existir a própria dignidade.
Se não houver esta dignidade construída da matéria prima mais barata das coisas triviais do cotidiano no agente, não existirá compromisso com o companheiro, nem com o sistema.
Naquele dia, depois da noite mais escura, escapei...
Peguei minha moto 150 e ganhei a rodovia.
Em dado momento, olhei para o céu azul e tudo estava tão lindo.
Fiz uma oração para meu Senhor agradecendo por ter escapado incólume após mil terem caído ao meu lado, e dez mil à minha direita, e nada, absolutamente nada chegou em mim.
Legião pensa que tem poder... mas o sangue de Jesus é bem maior.
Confesso que uma lágrima caiu pelo meu rosto e o vento forte a levou para molhar um pedaço do asfalto quente.
Chorava a alegria dessa comunhão de sentir Ele tão perto de mim, de saber que Ele cuida de mim e que estava com a gente, eu e meus companheiros, mesmo nos momentos mais tensos e perigosos.
Agradeci pelos meus companheiros, corajosos companheiros que dividem comigo a miséria de não ser reconhecido por nada e ninguém.
Somos gente esquecida do mundo.
Ninguém quer saber de nós.
Mas, escutando o ronco da moto, vendo o asfalto passar abaixo de mim, sobre minha cabeça o céu azul mais lindo, ao meu lado arvores e flores se abrindo belas para me encantar eu soube que nunca estarei sozinho de verdade.
Esqueça de mim, mundo, por gentileza!
Nada tenho e nada quero com você e sua honra barata.
Abracei meu Jesus na velocidade e no anseio de chegar em minha casa.
Depois do mais tenebroso plantão...
... veio a alegria mais intensa de se saber amado de verdade!

Não estamos sozinhos, meu companheiros!!!



terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

ELOGIO ÀS MARMITAS


Não existe utensílio mais nobre do que a marmita.
Ela confere ao seu portador a melhor dignidade.
Trabalhadores usam marmitas.
Sem querer dizer que, quem não usa marmita não é trabalhador.
A questão é que ela é um símbolo, um totem de sacrifício humano em produzir e construir.
Além disso existe outra questão, para mim mais importante, raramente marmitas são preparadas pela mesma pessoa que a irá usar, quem faz esse afazer é sempre outro, outro que derrama durante esse trabalho todo um sentimento  de alguém que cuida e ama; de alguém que se preocupa com o próximo; marmitas também são sinônimos de amor e solidariedade.
A maioria das pessoas vê marmitas com desdém.
Não conseguem enxergar nela o seu real valor. Não percebem que ela está sempre em seu lugar desconfortável, longe dos lugares nobres da cozinha e quando convocada apresenta-se para o trabalho sempre com o mais branco sorriso. Marmitas não têm preguiça, nem reclamam de nada, elas amam servir ao seu senhor e faz disso uma vocação despejando o melhor de si.
Marmitas sabem que, depois de tudo, depois que forem usadas muitas vezes com piadas humilhantes sobre elas, seu destino será retornar para o mesmo limbo, um universo onde habita o esquecimento.
Elas não se importam com isso, aprenderam a viver com o pouco que possuem esses raros momentos de protagonismo onde seu senhor desfila com elas de mãos dadas pelas ruas, praças, avenidas e empresas da cidade. Nessa hora elas são felizes, se sentem importantes.
Oh, marmitas! O que todos nós temos feito a vocês?
Eu não tenho nada melhor para lhes oferecer, como vocês sou pequeno e frágil, mas ainda que tudo isso seja pouco, lhes dou o meu reconhecimento pelo seu valor e nobreza.
Voces são singulares e poderosas, queridas marmitas! Saibam disso! Não deixem ninguém lhes convencer do contrário, o contrário é mentira.
E entre todas vocês, existe uma que especialmente cumprimento. E esta história aconteceu muito tempo atrás e me foi contada pelo meu amor mais lindo. Amor que também usa marmitas. Amo vocês marmitas, vocês cuidam do meu amor.
Esta era uma marmita pertencente a uma criança do campo, que assim como sua marmita também era nobre, digna, valorosa, trabalhadora, e, ainda assim, era humilhada diariamente pelos orgulhosos (tolos!) que acreditavam que a gordura saturada da cantina da escola lhes premiava ostentação e superioridade.
Um dia, esse grupo de tolos orgulhosos jogou a marmita dessa criança no chão e todos viram a comida se espalhando pelo frio chão da escola enquanto que a marmita rolava estrondosamente escadaria abaixo.
As lagrimas de vergonha da criança misturaram-se as lagrimas de escárnio dos ricos debochados.
O quadro pintado parecia de Salvador Dali.
De um lado, a marmita humilhada; do outro, os lanches de cantina exaltados.
Isso não é para mim, não quero conhecer esse mundo.
Mundo que prefere os indiferentes e frios lanches de cantina ao calor sentimental de uma marmita.
Sei e somente sei que precisamos de mais marmitas.
As pessoas necessitam delas, urgente.
Quanto a criança, ela sobreviveu, lembrem-se que tinha gente que enchia sua marmita todos os dias e essa mesma gente a protegeu e a amou, e ela cresceu,  se tornou um pai de família, foi produtivo para a sociedade e se tornou um servo do Senhor.
Os tolos orgulhosos??? Ah! Esses outros eram apenas lanches de cantina, desses que se compram em qualquer lugar...

sábado, 23 de janeiro de 2016

EMERALDO, O ZÉ


Existem coisas que aproximam.
Existem coisas que distanciam.
Conheci o Zé da Chalana do rio Paraguai num final de tarde qualquer do verão corumbaense. Era final de ano e ele iria fazer a ultima viagem do dia, nos acolheu com a mesma energia, vivacidade e simpatia como se fosse a primeira excursão.
Havia um sorriso sempre presente escondido em sua face, estes sorrisos que não se apresentam cheio de dentes, e sim, que ficam pregados nos rostos com os fortes cravos da simpatia. Estes nunca saem, não importa o que aconteça. Sorrisos com dentes são frágeis demais, qualquer coisa os fazem sumir para uma terra longínqua onde se exilam e dificilmente saem de lá. Terra estranha. O sorriso do Zé era uma rocha inexpugnável em sua rosada face.
A mulher do Zé é a Dona Lú.
Era ela quem ia para o meio do povo fazer ás vezes de mestre de cerimônia distribuindo galanteios; gentileza sempre foi a melhor propaganda do Zé.
Iniciada a viagem tudo era muito exuberante, a natureza do pantanal chama a atenção pela sua riqueza na fauna e na flora, tudo isso tendo como moldura uma paisagem magnifica. Deus é um poeta, sem dúvidas.
Não desviemos nossa atenção nos atrativos da paisagem e voltemos para nossa narrativa.
O Zé não nasceu José.
O Zé nasceu Emeraldo.
Ele se tornou Zé por um acaso do destino.
Chegou um dia cheio de sonhos do interior de São Paulo para tentar a sorte no pantanal, após alguns anos de trabalho adquiriu uma chalana.
As coisas não começaram bem, Emeraldo trabalhava muito, mas o sucesso não se aproximava dele. Ele tinha tudo pronto, e sabia bem disso. Mas o pavio da sorte jamais era aceso, assim o sucesso não estourava.
Num dia de rotina alguém que não conhecia Emeraldo enxergou em Emeraldo um Zé. Outro alguém escutou a conversa do Zé e se aproximou, papo vai, papo vem, estas pessoas encantaram-se com a simpatia do Zé e saíram espalhando Corumbá afora as delicias da chalana.
No mesmo instante, Emeraldo entendeu tudo e acendeu o pavio da sorte.
Enterrou com pás generosas de esquecimento o Emeraldo e pariu o Zé.
Emeraldo distanciava as pessoas.
O Zé não, o Zé as convidava para afinidades, aproximava todas elas de si como moscas em mel, as amabilidades e as gentilezas do Zé eram ingredientes fáceis para fabricar amizades... e clientes.
É certo que a chalana ter aparecido no inicio de uma novela de sucesso ajudou, mas Zé sempre duvidou se o sucesso midiático teria vindo se sua barca tivesse o nome de Emeraldo. Até a barca gostava mais do Zé do que do Emeraldo.
Emeraldo distanciava mesmo as pessoas.
O Zé aproximava.
Quando o passeio terminou e fomos embora, lembrávamos de jacarés preguiçosos na tarde pantaneira e de gaivotas pescando; também vinha na memória o ocaso que se deitava preguiçosamente sobre o leito do rio Paraguai; o que realmente ficava protuberante em nosso encanto era a simpatia do Zé, o Zé que nasceu Emeraldo.
Só que Emeraldo distanciava as pessoas, e o Zé queria estar perto delas, falar com elas.
Existem coisas que distanciam.
Existem coisas que aproximam.
Quando a boa vontade encontra as gentilezas obtém-se a fórmula perfeita das afinidades, essa goma que une as pessoas. Zé descobriu isso naturalmente, estava nele, ele somente não sabia disso quando era Emeraldo, tudo se fez claro quando se tornou Zé.
Afinidade é bom para os negócios, muito melhor para os relacionamentos.
Posso estar equivocado, a gente se engana em muitas coisas. No que tange aos nomes de todas as gentes nada se apresenta contra um, outro ou aquele nome – neste aspecto, Emeraldo e Zé se equivalem. Nomes de pessoas são apenas nomes, não tem força para construir uma biografia, o inverso é que é verdadeiro – são os homens com suas ações, atitudes e seu olhar sobre o mundo em que vivem é que lapidam seus nomes no diamante da história.
Nisto Zé sempre foi diferente de Emeraldo.
Emeraldo distanciava as pessoas.
Zé as aproximava.
Definitivamente, a humanidade necessita de mais Zés.


LADRÃO DE LOUVORES


Saiu de noite pelas ruas da cidade a procura de uma facilidade qualquer.
Buscava o improviso, a vacilada, o cochilo, o descuido de algum cidadão. Ladrões buscam oportunidades, e, sobretudo, as oportunidades que se oferecem mais fáceis, baixo risco. 
Trabalho nesse ramo significa risco, e risco para este tipo de ladrão é besteira. Este em especial cortejava a facilidade.
Ela surgiu num bairro nobre da cidade.
Um belo carro com um belíssimo toca cd’s, fora de casa em uma rua escura, o automóvel parado embaixo de uma árvore. Enfim, tudo preparado a espera dos seus serviços. Mamão com açúcar.
Foi tudo muito rápido, como tem de ser e como sempre o fora com ele, um especialista nestes assuntos de invadir o alheio. 
Abriu o carro, deu uma vasculhada rápida em busca de celulares e carteiras – vai que a sorte lhe sorria ainda mais – e nada, somente o aparelho de som automotivo caro e moderno.
Tomou-o para si como se fosse seu. Partiu, deixando para trás tudo como estava quando chegara, com exceção, é lógico, do objeto furtado. 
Sorria, iria garantir na “boca” uns três dias de fumo. Que beleza!
Chegou a sua casa e tomou um banho demorado. Sempre fazia isso e nunca entendeu os reais motivos dessa atitude.
Parecia querer limpar com água as maldade que fazia com a carne, expurgar as culpas inconscientes de uma consciência cunhada na fogueira dos pecados. 
Depois, foi ter a real dimensão do seu “achado”.
Olhou e viu que era artigo de primeira. Boa marca. Bom produto. Tecnologia e funcionalidade tudo de mãos dadas num mesmo aparelho. Riu de si mesmo, parecia estar fazendo propaganda.
Meditou sobre isso e chegou a conclusão de que estas empresas de marketing deveria ter em suas consultorias um ladrão, feito ele, essa gente toda sabe o que é realmente bom. 
Envaideceu-se com isso – de gostar somente de coisas boas. 
O fato de essas “coisas boas” serem de terceiros, isso desprezou sem maiores considerações. Era um sujeito sossegado nestas questões.
Um olhar mais atento observou que havia um cd original dentro do aparelho.
A curiosidade aguçou sua vontade, a vontade acionou suas ações, e suas ações fizeram com que retirassem o cd do aparelho e colocasse num outro, de sua propriedade (??) para que o pudesse ouvir.
A música começou suave, boa música suave, e ele percebeu que era um louvor desses evangélicos, como eles chamam mesmo? Perguntou-se... Gospel??? Isso mesmo, gospel!!!
Parou um bocado na frente da música.
A canção invadiu o ambiente como se fosse uma pessoa ali presente, como se falasse com ele. 
Devagar ela foi tomando conta do espaço, ganhando cada contorno do barraco, deitando-se em sua cama, sentando à frente de sua mesa, como se fosse uma massa que preenchesse cada espaço daquele lugar. 
De repente, se viu de olhos fechados.
O Louvor o convidava para dançar.
Sem perceber como se deixou envolver por cada nota, e em sua consciência dançava com a música. 
Embalado, extasiado, ouvia cada palavra que falava de um sacrifício que nunca acreditara que pudesse haver. 
Como alguém poderia morrer por outro alguém?
Alguém como ele?
Achou-se num primeiro momento um bobo, por estar se questionando essas coisas, mas a verdade era que tudo isso era mais forte que ele. Não conseguia controlar.
A música não parava de falar aos seus ouvidos.
Mas ele sabia que não escutava com os ouvidos.
A música entrava dentro dele pelo coração.
Ficou envergonhado.
Havia roubado um servo de Deus.
Imediatamente, colocou tudo dentro da velha mochila que sempre o acompanhava e já era alta madrugada quando saiu de seu barraco na periferia velha da velha cidade. 
Quando chegou na casa onde havia aliviado do carro o aparelho, viu que tudo estava como antes. O antes de como deixou...
Entrou novamente no automóvel, deixou o aparelho de som sobre o banco do motorista e junto um bilhete que dizia: “Perdoe-me por ter roubado um servo de Deus, um crente!”
Voltou para sua casa imediatamente.
Ao chegar todo o ritual foi o mesmo, com exceção do banho que não sentiu necessidade. Nem soube por quê?
Ajoelhou-se na beira da cama improvisada com um colchão fino como até então era suas possibilidades e orou de um jeito que achou grosseiro, mas foi colhida com alegria pelo Ouvido divino.
Ele não sabia ainda, somente o saberia depois, mas estava convertido.
No outro dia, quando Deus lhe dava mais um dia para se juntar a sua coleção, dirigiu-se para uma igreja evangélica que ficava perto de sua casa. 
Humilde como ele.
Recebeu-o um pastor cheio de alegria e abraços.
Na nave da igreja, uma música era cantada de forma belíssima em todos os alto-falantes do lugar.
O ladrão ficou espantado, melhor dizer maravilhado.
Era a mesma canção que ouvira do cd roubado.
Sabia, naquele instante, que Deus falava com ele.
Deus estava interessado nele, nele que nunca ninguém prestou atenção.
Quando o pastor o abraçou, não era mais um ladrão que abraçava, e sim, um servo de Deus convertido que chorava e chorava como uma criança.
A misericórdia de Deus plantava mais uma alma em seu jardim.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Vestido Escarlate


Primeiro texto publicado de minha estimada cunhada Regiane Reis.
Recomendo imediata leitura.

A tarde moribunda partia se despedindo dos últimos raios de sol. Era outono. As árvores lamentavam a perda de suas amarelas folhas, cuja estação trazia para aquelas bandas uma tristeza avassaladora que se expandia pela paisagem. Nesse contexto propício para divagações, a donzela de longos cabelos encaracolados caminhava lentamente pela alameda que dava para os fundos da habitação. Seu coração apertado pelos pensamentos que lhe nublavam o semblante, remoía a doce melancolia do sentimento recolhido dentro do peito. Fora pega de surpresa. Nunca imaginara ser capaz de amar assim um completo estranho. Viu seu rosto sereno uma única vez. Foi o suficiente. Amava, bem o sabia. O sentimento crescendo dia a dia sem ao menos ter um nome. E se perguntava, a cada momento, quem era ele. As perguntas atormentavam-na há dias sem, contudo, alcançar a chave das respostas. Foi na noite do baile de máscaras que vislumbrou sua imagem transfigurada numa pele morena com negros cabelos e olhos profundos, tão profundos que foram capazes de se destacarem em meio a tantos outros daquela noite. O mancebo também notara os seus e perscrutou-os incansavelmente. Todo um mundo silencioso velado no fundo escuro de seu olhar. Era um entardecer interior? Talvez. A vida também tem as suas estações e, às vezes, o outono e o inverno se revezam, retendo a primavera. Nessa tarde, chegou à casa misterioso convite, logo após o descolar do selo, seguido da leitura, o patriarca mandou que fossem chamar a jovem. A esperaria na sala de estar. Querida, disse ele em tom suave, fomos convidados por Sir Arthur para o baile de boas-vindas celebrado em comemoração ao retorno do filho Alphonsus. Quererás ir?, perguntou no mesmo tom. Não, foi a resposta. Diante da recusa, surpreso, o pai ponderou que a moça não deveria perder a oportunidade de conhecer novas pessoas ou rever antigos conhecidos... disse isso deixando transparecer um meio sorriso, com certo ar maroto, apesar da seriedade da figura de meia idade. A cena revelou-lhe a verdade. Certamente o pai sabia do turbilhão de sentimentos que fervilhavam o coração da filha. Frente ao visível rubor que subiu às suas faces, acrescentou: Pense melhor, amanhã responda-me. Naquela noite, o sono despregou de seus olhos e por mais que tentasse se apossar dele, inutilmente fugia-lhe ao alcance, pois considerava a remota oportunidade de rever o estranho. Os primeiros raios de sol beijaram-lhe a face pálida e, anunciaram com eles, a firme decisão de ir ao baile. O comunicado coloriu a manhã paterna, cujo resultado foi deixar-lhe livre para escolher o traje. Era órfã de mãe, por isso, recaiu sobre madame Gertrudes, a costureira, a tarefa de ajudar na escolha da vestimenta. Tinha vasta experiência, coseu muitos vestidos para bailes da corte. Trouxe-lhe os variados tecidos com suas cores diversas. Estava a decidir, quando encostou, rente ao corpo, um tecido de veludo escarlate. Perfeito! Será este. O corte preciso desenhou no vestido o corpo esguio da bela moça e realçou seu porte de dama da corte. O colo à mostra com punhos de renda branca francesa, deram o toque final. Os cabelos, presos à moda da época, realçaram a beleza sacerdotal do rosto. Uma tiara de rubis foi posta sobre o penteado. Chegara o dia do baile. O nobre conduziu-a pelo braço até a entrada do salão repleto de convivas, seu rosto brilhava com visível satisfação, pois, à sua passagem, todos volviam os olhares. A filha era um botão em flor. Pararam diante do anfitrião que os recebeu com a devida formalidade e, ao mesmo tempo, encaminhava os convivas para saudarem o homenageado da noite. O rapaz que, de costas volvidas cumprimentava alguém, voltou-se para cortejá-los, no mesmo instante em que a moça encontra o veludo negro daqueles olhos e reconhece-os. Era ele. Seu interior perturbou-se, as mãos ficaram gélidas por alguns instantes, mas, exteriormente, o embaraço passou quase desapercebido. O jovem, pela surpresa do encontro, quedou-se por alguns segundos estagnado. Logo recompondo-se, cumprimentou-a cordialmente, com um toque de lábios nas costas de uma das delicadas mãos. Sentia que o silêncio prolongado do pai denunciava a descoberta, abaixou o olhar, essa janela traiçoeira da alma. Queria velar os segredos de seu puro coração. À primeira baila da noite, Sir. Alphonsus a convidou para a valsa. Consentiu, com certo tremor a percorrer seu corpo. Uma das mãos tocaram a cintura e a outra segurou sua mão. Depositou a mão esquerda em seu largo ombro. Foi o primeiro toque. Distinguiu tantas coisas nesse momento, viu que sua pele era bronzeada e seus cabelos mais negros e lisos do que pensou. A valsa iniciou com outros pares à roda. Em algum canto do salão, os pais observavam satisfeitos. A voz sussurrada soou como trovão aos seus ouvidos. Amo-te, foi a primeira coisa que ouviu. Pareceu a princípio não compreender a dimensão das palavras, pois, depois de algum tempo, respondeu: Sejas delicado, não caçoes. Tentava manter a calma e a firmeza dos gestos. Depois de um curto silêncio, confessou: Quase ensandeci tentando descobrir quem era você e, finalmente, a encontrei. Amo-te, afirmarei mil vezes, se desejar. O diálogo ia correndo como uma brisa mansa de fim de tarde, embalados pela música suave, esquecidos da assistência ao redor. Sorriu levemente, tentando disfarçar o tremor que agora transparecia pela silhueta do vestido. Como poderei ter certeza de que não estas zombando? Provo-o, se assim o desejares, respondeu com firmeza de voz. Peço-a em casamento a seu pai nesse instante. Estás louco, retrucou com um tom de espanto na voz. E tu? Correspondes-me o amor? O silêncio reinou entre eles, não conseguiu pronunciar palavra. Apenas um rubor de faces acentuou as palavras daquele silêncio. Hesitava, pois não sabia se confiava o segredo de seu amor. Temeu. Desta feita, foi ele quem falou: Amas-me, estou certo! Leio-o em teus olhos. Ela acenou com a cabeça. Os olhares falaram tantas coisas. Pactos foram selados. Era madrugada alta quando a carruagem entrou no pátio que dava acesso ao alpendre de sua casa. A luz do luar irradiava como que anunciando prenúncios de novas temporadas por aquelas paragens. Após tomar a benção do pai, fechou-se no quarto. Girou a chave na fechadura e deixou-se ficar encostada na madeira da porta, não queria interromper os próprios pensamentos. Recordava-se do inesperado reencontro, das valsas bailadas e dos diálogos mudos travados na hora da despedida. Esgotada pelas emoções vividas, tirou o vestido, dobrou-o com esmero, acariciou o veludo escarlate e, por fim, o acomodou numa das poltronas postadas perto do toucador. Depois daquela noite, o pedido de casamento foi realizado com as pompas que a nobreza da moça exigia. Desta vez, o vestido escarlate ficou esquecido num canto, substituído por um longo vestido branco, com direito a mesma madame Gertrudes no labor do coser. Pérolas, rendas francesas e botões em flor, tudo cuidadosamente selecionado. O traje perfeito para a cerimônia a ser celebrada. Era o mesmo salão, mas, desta vez, os convidados aguardavam a bela donzela surgir na entrada, pois era ela a homenageada da noite. Trajava o longo vestido branco cerzido para o evento. A face vinha envolta por delicado véu e o ramalhete de noiva suspenso em uma das mãos. O coração a galope, fazendo o braço paterno fremir com o tremor de seu corpo. Surgiu, enfim, na entrada. As flores do campo enfeitavam as fileiras de bancos, as fitas e as rendas dispostas sacramentavam a marcha nupcial. No lugar apropriado, o noivo à espera. Estava se sentindo esplêndido naquela noite. É minha, só minha, pensava a todo instante. E como está linda! - dizia consigo. Horas depois empurrou com os cotovelos a porta do aposento de núpcias, a noiva aconchegada em seus braços. Com delicadeza, depositou-a no leito. A porta se fechou. No interior do aposento, lá estava ele. Disfarçado em um canto. Foi testemunha das juras de amor, juras aquecidas pelas primeiras carícias que os conduziram às recâmaras de fragrâncias desejáveis. Nada lhe escapou. Ruborizou-se um pouco mais, é verdade, mas o fato passou imperceptível. A madrugada sempre solitária, esteve acompanhada por longo tempo. E, por isso, amuou-se ao ter que ceder lugar aos primeiros raios da alvorada. Queria ficar, foi obrigada a partir. Esteve o tempo todo no mesmo lugar, não se mexeu nem por um instante. Não podia distrair os amantes. Deixou-se ficar ao lado do toucador, pendurado num cabideiro, já que seria solicitado para ocasião matutina. Fora, como já se disse, testemunha de tudo. Esperava. Discreto, apesar da indiscrição. Além disso, não era preciso ponderar. A manhã despertou de vez. Raios de sol luminosos fizeram gracejos no veludo escarlate do vestido.
Regiane Reis