quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

QUANDO AS PRIMAVERAS CHEGAM...


Já faz algum tempo que não escrevo nada.
Essa esterilidade momentânea não é rara e os motivos podem ser os mais diversos, entretanto, não irei acariciar nenhum deles neste dia, minha atenção abraçará a história que sobe neste palco branco, história que é admirável por natureza.
Todos os motivos se tornam esquecidos quando a gente aprende a colocar nossos olhos nas belas coisas da vida, assim se fabrica a poesia no viver, os poetas mais extraordinários são os sábios, aqueles que sabem como olhar as coisas todas em sua volta.
Porque se eu não souber olhar, a cruz será apenas madeiro, jamais sacrifício de Deus por amor ao homem.
Se eu não souber olhar, a salvação terá que ter um preço a pagar e nunca será graça, apenas graça.
Se eu não souber olhar, o outono será apenas a estação das folhas, nunca a expectativa da primavera.
Se eu não souber olhar, letras serão apenas rabiscos em uma folha, jamais palavras.
O que torna esta história mais interessante é que ela não me chegou por meio do olhar de poeta. Ela me foi abençoada através de um ouvido atento. Gosto de ouvir as pessoas, me comunicar com elas, saber o que pensam sobre a cruz, como enxergam a salvação, enfim, saber o que são para elas outonos e primaveras.
Um homem contou-me estes fatos acerca de sua própria mãe que aos 73 anos ainda não sabia ler. Letras para essa senhora eram outonos, nunca foi primavera. Para quem sabe ler, as palavras  são flores oferecidas num buque de texto; para quem o ler é um universo desconhecido, palavras são apenas folhas dispersas no chão do papel.
Um dia, sua esposa, iluminada pela poesia da vida, tomou uma cartilha qualquer e untou-a com boa vontade e doses generosas de amor e dedicação e começou a alfabetizar a sogra. O dia que a velha senhora descobriu o “A” foi glorioso; o “I” foi ainda mais especial – o I a lembrou da sua igreja.
Com muita perseverança e carinho as letras foram mostrando suas faces à velha senhora e ela as foi conhecendo pelo nome e se lhe tornando intimas amigas.
Um dia, quando começou os ajuntamentos das letras, ela conheceu o êxtase – enfim, era apresentada as palavras.
No dia em que aprendeu a escrever seu nome, ela chorou.
A maior revelação de sua vida, contou para o filho, foi o dia em que conseguiu ler João 3.16 por sua própria conta – finalmente entendia o que era o amor absoluto.
O apogeu foi no banco, quando foi renovar seus papéis de aposentadoria. A atendente que já a conhecia, retirou de uma gaveta uma velha e suja almofada onde, por tantas e tantas vezes ela esmagará o dedão. Em vez disso, solicitou uma caneta e, para espanto e alegria da moça, assinou seu nome.
Naquele dia, a senhora sentiu-se gente de verdade e desde então leu tudo o que pode até o dia de sua morte, quatro anos atrás.
As coisas são mesmo assim...
A vida é mesmo assim...
Alguns olhares quando colocados sobre as palavras são apenas outonos.
Alguns olhares, quando sabiamente treinados, sobre as palavras são jardins de flores nas primaveras.
Aquela senhora na maior parte de sua vida conheceu apenas outonos, até que um dia a poesia a visitou por meio de sua nora. Então, e somente então, conheceu a primavera da leitura; experimentou a poesia da transformação de sua vida, aprendeu definitivamente a ler o mundo com seus próprios olhos.


O HOMEM MAIS CHATO DO MUNDO


A cadeia produz uma espécie de preso que é conhecido como chato.
São presos que por sua própria natureza já possuem características cansativas no convívio social, depois que foram submetidos a anos e anos de drogas de tudo quanto é jeito e muita cachaça, zerou todo o bom senso. Se ele era chato, tornou-se muito, mas muito chato. Chato elevado a enésima potência.
Junta tudo isso com a abstinência e está concebido um quadro infernal.
O sujeito não consegue conviver bem com os outros presos, imagina com os agentes penitenciários.
Então, fica pulando de cela em cela; pavilhão em pavilhão, tentando encontrar alguém que o entenda ou que, simplesmente, tenha paciência com ele.
A paciência nunca entrou na cadeia.
Ela fica sempre lá na porta, aguardando as pessoas que se arriscam nesse universo.
Quando elas voltam, as pessoas, a paciência toma o seu lugar no assento do carro e segue fielmente as pessoas por todo o lugar que elas forem – nunca para dentro de cadeias.
A cadeia tem sua própria maneira de resolver as coisas, paciência não é o caminho.
O sujeito dessa história em seu tempo foi o homem mais chato do mundo.
Incomodava presos, polícia e os agentes penitenciários.
Ninguém o agüentava.
Quando estava em estado de abstinência de droga então, a coisa piorava bastante e o que era difícil ganhava contornos de insuportável.
Incomodou tanto, mas tanto que um dia, a grande cadeia não tinha mais lugar para ele.
Virará seguro em toda a parte, em toda a parte queriam o couro dele e a segurança penitenciária não tinha mais onde o colocar.
Cavará um poço tão profundo que foi necessário transferir ele para a capital.
Lá chegando, começou tudo do zero.
No seu caso, em vez de ir à frente, foi para trás.
Foi perdendo pontos, convívios, amizades, estabelecendo inimigos e desconhecido de afetos até que um dia, fecharam-se todas as portas para ele e uma nova transferência, desta vez para a maior cadeia da capital.
Lá já chegou indo para a solitária.
Antes dele chegou sua fama.
Um dia, de madrugada, uns presos saíram de sua cela e foram até a dele e o mataram de forma muito covarde.
Não teve gritaria.
Não teve ajuda.
Não teve nada.
A morte o visitou e o abraçou levando-o calado para o seu aprisco.
Lá viveria quieto e não incomodaria.
A morte também não tem paciência, ela não espera ninguém.
De verdade mesmo, ninguém se incomodou com ele.
Era um preso, era muito chato e tinha tantos inimigos...
Mas, na cadeia de origem dele, quando todos souberam tiveram um espanto... e isso passou num segundo.
Entre todos, alguém sofreu em silêncio a tristeza da perda desta vida incompreendida.
Era o mais chato entre todos os que pisaram naquela cadeia, mas a vida parece que não foi justa com ele, assim pensava este nosso amigo oculto.
Seus pensamentos foram interrompidos, um enorme bater de portas nas solitárias, era o novo candidato a homem mais chato do mundo realizando seu trabalho.
Este é concorrente forte, pensou enquanto se levantava e adentrava garganta adentro do enorme dragão.
A vida (e a morte) continuava...