sábado, 20 de fevereiro de 2010

SOBRE BAÚS, VESTIDOS E AMOR

Quando tu chegas
Nas mesmas horas iguais de todos os dias
E retiras dos velhos e empoeirados
Baús dessas horas estéreis
Finos tecidos de seda e organza,
Leves, coloridos, macios,
E reveste de cores meu tempo e meus sorrisos todos.
E retiras dessas gavetas mal cuidadas do tempo,
Poesias e flores de vários tipos.
As flores ornamentam
As prateleiras dos novos dias,
Emprestando perfume e beleza,
E as poesias vão nadar na brisa,
Proferidas com carinho e delicadeza
Pelos teus lábios róseos e carnudos.
E eis que a brisa sopra uma canção
Que veio das flores e das árvores,
Trazidas de um tempo longínquo,
Quando os deuses da floresta conjuravam
Encantamentos para o amor.
E esta tarde que prometia ser cinza
Torna-se a mais bela,
Pois te recepciono eufórico,
Como a natureza recebe a primavera.
Um raio de sol escapa do Astro-Rei
E vem se costurar na seda e na organza
Que vestem teu corpo em um belo vestido.
Flores nascem sob seus belos pés
Para que pises confortável,
E de tua boca
(... E da minha)
Todas as palavras saem cantando romance.
As velhas horas estão mortas, são cinzas!
Que se comemore os novos tempos,
O amor nasceu em minha vida!
Fechem-se todos os velhos baús,
Abrem-se todas as janelas da minha vida
Para este sol que alvorece!
Quando tu chegas, meu amor!
Deito contigo sobre uma cama feita de horas,
E faço-lhe amor demoradamente...
Beijo-te nos minutos,
Abraço-te nos segundos,
Amo-te pelos dias!
Esse amor me faz maior que o próprio tempo!

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2010

O GUARDADOR DE SONHOS (*)


Guardei meus sonhos todos, num belo pacote, num canto de meu coração. Deixei-os todos lá, pegando poeira neste armário de sentimentos. Lá ficaram meus amigos todos, trancados! Há muito tempo, meus amigos tem sido os maiores de meus sonhos. Lá ficou a vontade de andar de carro de boi, brincar de queimada num campo relvado, ficar de mãos dadas com a mulher que amo olhando o crepúsculo. Guardei todos os meus sonhos com a mulher que amo! Guardei meu sonho de uma gargalhada longa, sonora, descompromissada, daquelas que chamam a atenção de todos à sua volta. Guardei as emoções que vivi com o Palmeiras campeão, aquela frustração pelo gol mais feito da vida que foi perdido por mim na pelada do final de semana.

Guardei todas as orações que deveria ter feito e que, por qualquer motivo não as fiz. Guardei alguns abraços em muitos desconhecidos, guardei um milhão de beijos apaixonados, que raiva de mim mesmo, eu guardei um milhão de beijos apaixonados... devia ter beijado mais!
Guardei todas as viagens que não fiz e tive vontade de fazer, as línguas todas que não aprendi, os livros que não consegui ler e até o livro que não publiquei! Guardei a mais bela poesia que escrevi e que ninguém leu, guardei também todas as poesias de todos os grandes poetas do mundo que não consegui decorar – minha memória é tão horrível! Guardei os sorrisos de minha mãe e de meu pai, guardei os bate-papos com minha irmã. Guardei os cadeados de todas as prisões do mundo, guardei os canhões, todos eles, destas muitas guerras espalhadas pela Terra; guardei meu entusiasmo com a vida e com as pessoas! Tenho andando bastante desiludido ultimamente...

Porque eu fui um sonhador nesta vida, o maior de todos, e meus sonhos me fizeram uma pessoa melhor, me fizeram mais feliz... guardei isso também, a possibilidade de ser feliz! Guardei tudo no meu coração... Não haverá o amanhã!

(*) Já publicado neste blog!

quarta-feira, 10 de fevereiro de 2010

EU NÃO TE CONHEÇO DE AGORA!


Eu não te conheço de agora!
Ainda que tua face me seja um segredo,
Um doce segredo a ser desvendado,
Tu não me és estranha.
Eu te conheço do inicio dos tempos,
Desde o primeiro momento
Que o olhar de um homem
Pousou sobre o primeiro corpo de mulher.
Meu sorriso agora para você,
Carrega a mesma surpresa deliciosa
Do primeiro sorriso de um homem para uma mulher.
Vês este meu suspiro profundo,
Este êxtase prolongado,
Este olhar apaixonado,
Este divagar distante.
Tudo isso já foi meu – e teu!
No inicio de todas as coisas,
No inicio dos tempos,
No primeiro dia que um homem viu uma mulher!
Eu não te conheço de agora!
Sei tudo sobre você,
Tudo o que é mais importante.
Sei que gosta de flores,
E que se delicias com o pôr-do-sol.
A brisa que envolve o teu corpo,
Arrepia-te e tu fechas os olhos
Para deliciar-te com essa sensação.
Sei que tu amas a poesia,
A de estrofes e belas rimas,
E a poesia da vida
Que colore a felicidade com plenas cores.
Eu não te conheço de agora!
Eu te amo agora!
Eu te amei ontem!
E vou te amar dentro do amanhã
E para todo o sempre...

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2010

PEQUENA CONVERSA FRANCA ACERCA O TEMPO

Acreditas que possuis todo o tempo do mundo
E adias, constantemente, as decisões que lhe são mais caras.
Aquelas decisões que não envolvem terceiros,
Que são feitas de caráter intimo,
Que são feitas de você para você,
Decisões que mexem com tua personalidade
E com teus procedimentos mais habituais.
Aviso-te, que o tempo não é este teu amigo
Que pensas que ele o é.
O tempo é amigo de si próprio,
Ele se atém somente com as coisas de seu próprio interesse,
O tempo somente quer é seguir em frente,
Sem atalhos, sem concessões, sem paradas.
Ele não te esperará...
E não adiantas acusá-lo de qualquer coisa,
Se uma hora qualquer te assaltar a única
E grande verdade de todos nós.
O tempo não é falso, nunca te fez
(ou fará!) promessas vazias.
O tempo é pragmático e ortodoxo,
Suas regras estão aí, nítidas e indissolúveis,
Ele não as quebrara, nem as mudará,
Por você.... Por ninguém....
Cabe a você, somente você,
Adaptar-se as contingências do tempo
E não tentar ludibriar e convencê-lo do contrário.
Não enganas o tempo, meu amigo, não enganas.
Ao adiar as decisões que são somente tuas,
Enganas a si próprio...
O tempo somente conhece a verdade,
E tu, com concessões e dissimulações,
Flertas com uma mentira estúpida,
Debalde tentativa de enganar-se a si próprio.

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2010

A PEQUENA PRINCESA E A PAMONHA



... e ela me olhou com aquele rostinho inocente e lindo e perguntou-me do alto de sua ingenuidade.



- Pai, qual a diferença da pamonha salgada para a doce?



- ...



Olhei para minha princesa questionando até onde ia a verdade em sua pergunta... E a verdade estava lá, toda ela, firme como carvalho em seu sorriso fincado com raízes curiosas em sua face de menina, toda ela envolta em um brilho de expectativa. Sua verdade chamava-se inocência!



- Não muita diferença, minha filha! Não muita... Na pamonha salgada eles põem sal, na doce, açúcar...



Ela me olhou algo espantada consigo próprio.



E, juntos, estouramos nossa alegria numa grande e intensa gargalhada...

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

O FÍGADO INDISCRETO

Por José Bento Monteiro Lobato


Inácio era o rei dos acanhados. Pelas coisas mínimas, avermelhava, saía fora de sí e permanecia largo tempo idiotizado.

O progresso do seu namoro foi, como era natural, menos obra sua que da menina, e da família de ambos, tacitamente concertadas numa conspiração contra o celibato do futuro bacharel. Uma das manobras constou do convite que ele recebeu para jantar nos Lemos, em certo dia de aniversário familiar comemorado a peru.

Inácio barbeou-se, laçou a mais famosa gravata, floriu de orquídeas a botoeira, friccionou os cabelos com loção de violetas e lá foi, de roupa nova, lindo como se saíra da forma naquela hora. Levou consigo, entretanto, para seu mal, o acanhamento - e daí proveio a catástrofe...

Havia mais moças na sala, afora a eleita, e caras estranhas, vagamente suas conhecidas, que o olhavam com a benévola curiosidade a que faz jus a um possível futuro parente.

Inácio, de natural mal firme nas estribeiras, sentiu-se já de começo, um tanto desmontado com o papel de galã à força, que lhe atribuíam. Uma das moças, criaturinha de requintada malicia, muito "saída" e "semostradeira", interpelou-o sobre coisas do coração, idéias relativas ao casamento e também sobre a "noivinha" - tudo com meias palavras intencionais, sublinhadas de piscadelas para a direita e a esquerda.

Inácio avermelhou e tartamudeou palavras desconchavadas, enquanto o diabrete maliciosamente insistia: Quando os doces, Sr. Inácio?

Respostas mascadas, gaguejadas ineptas, foram o que saiu de dentro do moço, incapaz de réplicas jeitosas sempre que ouvia risos femininos em redor de si. Salvou-o a ida para a mesa.

Lá, enquanto engoliam a sopa, teve tempo de voltar a si e arrefecer as orelhas. Mas não demorou muito no equilíbrio. A culpa aqui foi da dona da casa. Serviu-lhe dona Luiza, um bife de fígado sem consulta prévia.

Esquisitice dos Lemos: comiam-se fígados naquela casa até nos dias mais solenes.

Esquisitice do Inácio: nasceu com a estranha idiossincrasia de não poder sequer ouvir falar em fígado - seu estômago, seu esôfago e talvez seu próprio fígado tinham pela víscera biliar uma figadal aversão. E não insistisse ele em contrariá-los: amotinavam-se repelindo indecorosamente o pedaço ingerido.

Nesse dia, mal dona Luiza o serviu, Inácio avermelhou de novo, e novamente saiu fora de si. Viu-se só, desamparado e inerme ante um problema de inadiável solução. Sentiu lá dentro o motim das vísceras; sentiu o estômago, encrespado de cólera, exigir, com império, respeito às suas antipatias. Inácio parlamentou com o órgão digestivo. Mostrou-lhe que mal momento era aquele para uma guerra intestina. Tentou acalma-lo a goles de Clarete, jurando eterna abstenção para o futuro, Pobre Inácio! A porejar suor nas asas do nariz, chamou a postos o heroísmo, evocou todos os martírios sofridos pelos cristãos na era romana e os padecidos na era cristã pelos heréticos; contou um, dois e três e glup! Engoliu meio fígado sem mastigar. Um gole precipitado de vinho rebateu o empache. E Inácio ficou a esperar, de olhos arregalados, a revolução intestina.

Em redor a alegria reinava. Riam-se, palestravam ruidosamente, longe de suspeitar o suplicio daquele mártir, posto a tormentos de uma nova espécie.

- Você já reparou, Miloca, na "ganja" da sinharinha? Disse uma das moças. - Está como quem viu o passarinho verde. E olhou de soslaio para Inácio.

O calouro, entretanto, não deu fé da tagarelice; surdo às vozes do mundo, todo se concentrava nas vozes viscerais. Além disso, a tortura não estava concluída; tinha ainda diante de si a segunda parte do fígado engulhento. Era mister ataca-la e concluir de vez a ingestão penosa. Inácio engatilhou-se de novo e - um, dois, três: glup! Lá rodou, esôfago abaixo, o resto da miserável glândula.

Maravilha! Por inexplicável milagre de polidez, o estômago não reagiu. Estava salvo Inácio. E como estava salvo, voltou lentamente a si, muito pálido, com o ar dos ressuscitados. Chegou a rir-se. Riu-se alvarmente, de gozo, como riria Hércules após o mais duro dos seus trabalhos. Seus ouvidos ouviam de novo rumores do mundo, seu cérebro voltava a funcionar normalmente, e seus olhos volveram outra vez as visões habituais.

Estava nessa doce beatitude, quando:

- Não sabia que o senhor gostava tanto de fígado, disse-lhe dona Luiz, vendo-lhe o prato vazio - repita a dose.

Fora de si outra vez, o pobre moço exclamou, tomado de pânico:

- Não! Não! Muito obrigado!...

- Ora, deixe-se de luxo! Tamanho homem com cerimônias em casa de amigos. Coma, coma, que não é vergonha gostar de fígado. Aqui está o Lemos, que se péla por uma isca.

- Iscas são comigo, confirmou o velho. Lá isso não nego, com elas ou sem elas, nunca as injeitei. Tens bom gosto rapaz. Serve-lhe, serve-lhe mais, Luiza.

E não houve salvação! Veio para o prato de Inácio um novo naco - este formidável, dose dupla.

Não se descreve o drama criado no seu organismo, e disfarçadamente ele aguardou o milagre.

E o milagre veio! Um criado estouvadão, que entrava com o peru, tropeçou no tapete e soltou a ave no colo de uma dama. Gritos, reboliço, tumulto. Num lampejo de gênio, Inácio aproveitou-se do incidente para agarrar o fígado e mete-lo no bolso.

Salvo! Nem dona Luiza nem os visinhos perceberam o truque - e o jantar chegou à sobremesa sem maior novidade.

Antes da dançata, lembrou alguém recitativos e a espevitadíssima Miloca veio ter com Inácio.

- A festa é sua, doutor. Nós queremos ouvi-lo. Dizem que recita admiravelmente. Vamos, um sonetinho de Bilac.Não sabe? Olhe o luxinho! Vamos, vamos! Quer decerto que a Sinharinha insista?... Ora, até que enfim! A douda de Albano? Conheço sim, é linda, embora um pouco fora de moda. Toque a Dalila, Sinharinha, bem piano... assim...

Inácio, vexadíssimo, vermelhíssimo, já em suores, foi para o pé do piano, onde a futura consorte preludiava a Dalila em surdina. E declamou a douda de Albano.

Pelo meio dessa hecatombe em verso, ali pela quarta ou quinta estrofe, uma baga de suor escorrida da testa parou-lhe na sobrancelha, comichando qual importuna mosca. Inácio lembra-se do lenço e saca-o fora. Mas com o lenço, vem o fígado, que faz... plaf! no chão. Uma tocida forte e um pé plantado sobre a infame víscera, manobras do instinto, salvam o lance.

Mas desde este momento a sala começou a observar um extraordinário fenômeno. Inácio, que tanto se fizera rogar, não queria agora sair do piano. E mal terminava um recitativo, logo iniciava outro, sem que ninguém lhe pedisse. É que lhe acorrentava àquele posto o implacável fígado!

E Inácio recitava. Recitou sem música: "O navio negreiro", "As duas ilhas", "Vozes da Africa", "O Tejo era sereno"

Sinharinha, desconfiada, abandonou o piano. Inácio, firme. Recitou "O corvo, de Edgar Poe, "Quisera amar-te", "Acorda donzela", citou poemetos, modinhas e quadras .

- Nun canto da sala Sinharinha estava, chora-não-chora. Todos se entreolhavam. Teria enlouquecido o moço?

Inácio firme. Completamente fora de si, e farto de recitativos de salão, recorreu aos Lusíadas. E declamou " As armas e os barões", "Estavas linda Inês", "Do reino às rédeas leve" - tudo!...

. E esgotado de Camões, ia lhe saindo um "Ponto" de filosofia de direito - A única coisa que lhe restava na memória, quando perdeu o equilíbrio, escorregou e caiu, deixando aos olhos arregalados da sala a infamérrima víscera exposta!

Adeus casamento, adeus terra, porque Inácio teve que se mudar dali, pois o malvado capitão Lemos espalhou por toda a cidade que Inácio era, sem dúvidas, um bom rapaz, mas com um grave defeito: Quando gostava de um prato, não se contentava em comer e repetir, ainda levava escondido no bolso o que podia!