sexta-feira, 8 de janeiro de 2016

O Vestido Escarlate


Primeiro texto publicado de minha estimada cunhada Regiane Reis.
Recomendo imediata leitura.

A tarde moribunda partia se despedindo dos últimos raios de sol. Era outono. As árvores lamentavam a perda de suas amarelas folhas, cuja estação trazia para aquelas bandas uma tristeza avassaladora que se expandia pela paisagem. Nesse contexto propício para divagações, a donzela de longos cabelos encaracolados caminhava lentamente pela alameda que dava para os fundos da habitação. Seu coração apertado pelos pensamentos que lhe nublavam o semblante, remoía a doce melancolia do sentimento recolhido dentro do peito. Fora pega de surpresa. Nunca imaginara ser capaz de amar assim um completo estranho. Viu seu rosto sereno uma única vez. Foi o suficiente. Amava, bem o sabia. O sentimento crescendo dia a dia sem ao menos ter um nome. E se perguntava, a cada momento, quem era ele. As perguntas atormentavam-na há dias sem, contudo, alcançar a chave das respostas. Foi na noite do baile de máscaras que vislumbrou sua imagem transfigurada numa pele morena com negros cabelos e olhos profundos, tão profundos que foram capazes de se destacarem em meio a tantos outros daquela noite. O mancebo também notara os seus e perscrutou-os incansavelmente. Todo um mundo silencioso velado no fundo escuro de seu olhar. Era um entardecer interior? Talvez. A vida também tem as suas estações e, às vezes, o outono e o inverno se revezam, retendo a primavera. Nessa tarde, chegou à casa misterioso convite, logo após o descolar do selo, seguido da leitura, o patriarca mandou que fossem chamar a jovem. A esperaria na sala de estar. Querida, disse ele em tom suave, fomos convidados por Sir Arthur para o baile de boas-vindas celebrado em comemoração ao retorno do filho Alphonsus. Quererás ir?, perguntou no mesmo tom. Não, foi a resposta. Diante da recusa, surpreso, o pai ponderou que a moça não deveria perder a oportunidade de conhecer novas pessoas ou rever antigos conhecidos... disse isso deixando transparecer um meio sorriso, com certo ar maroto, apesar da seriedade da figura de meia idade. A cena revelou-lhe a verdade. Certamente o pai sabia do turbilhão de sentimentos que fervilhavam o coração da filha. Frente ao visível rubor que subiu às suas faces, acrescentou: Pense melhor, amanhã responda-me. Naquela noite, o sono despregou de seus olhos e por mais que tentasse se apossar dele, inutilmente fugia-lhe ao alcance, pois considerava a remota oportunidade de rever o estranho. Os primeiros raios de sol beijaram-lhe a face pálida e, anunciaram com eles, a firme decisão de ir ao baile. O comunicado coloriu a manhã paterna, cujo resultado foi deixar-lhe livre para escolher o traje. Era órfã de mãe, por isso, recaiu sobre madame Gertrudes, a costureira, a tarefa de ajudar na escolha da vestimenta. Tinha vasta experiência, coseu muitos vestidos para bailes da corte. Trouxe-lhe os variados tecidos com suas cores diversas. Estava a decidir, quando encostou, rente ao corpo, um tecido de veludo escarlate. Perfeito! Será este. O corte preciso desenhou no vestido o corpo esguio da bela moça e realçou seu porte de dama da corte. O colo à mostra com punhos de renda branca francesa, deram o toque final. Os cabelos, presos à moda da época, realçaram a beleza sacerdotal do rosto. Uma tiara de rubis foi posta sobre o penteado. Chegara o dia do baile. O nobre conduziu-a pelo braço até a entrada do salão repleto de convivas, seu rosto brilhava com visível satisfação, pois, à sua passagem, todos volviam os olhares. A filha era um botão em flor. Pararam diante do anfitrião que os recebeu com a devida formalidade e, ao mesmo tempo, encaminhava os convivas para saudarem o homenageado da noite. O rapaz que, de costas volvidas cumprimentava alguém, voltou-se para cortejá-los, no mesmo instante em que a moça encontra o veludo negro daqueles olhos e reconhece-os. Era ele. Seu interior perturbou-se, as mãos ficaram gélidas por alguns instantes, mas, exteriormente, o embaraço passou quase desapercebido. O jovem, pela surpresa do encontro, quedou-se por alguns segundos estagnado. Logo recompondo-se, cumprimentou-a cordialmente, com um toque de lábios nas costas de uma das delicadas mãos. Sentia que o silêncio prolongado do pai denunciava a descoberta, abaixou o olhar, essa janela traiçoeira da alma. Queria velar os segredos de seu puro coração. À primeira baila da noite, Sir. Alphonsus a convidou para a valsa. Consentiu, com certo tremor a percorrer seu corpo. Uma das mãos tocaram a cintura e a outra segurou sua mão. Depositou a mão esquerda em seu largo ombro. Foi o primeiro toque. Distinguiu tantas coisas nesse momento, viu que sua pele era bronzeada e seus cabelos mais negros e lisos do que pensou. A valsa iniciou com outros pares à roda. Em algum canto do salão, os pais observavam satisfeitos. A voz sussurrada soou como trovão aos seus ouvidos. Amo-te, foi a primeira coisa que ouviu. Pareceu a princípio não compreender a dimensão das palavras, pois, depois de algum tempo, respondeu: Sejas delicado, não caçoes. Tentava manter a calma e a firmeza dos gestos. Depois de um curto silêncio, confessou: Quase ensandeci tentando descobrir quem era você e, finalmente, a encontrei. Amo-te, afirmarei mil vezes, se desejar. O diálogo ia correndo como uma brisa mansa de fim de tarde, embalados pela música suave, esquecidos da assistência ao redor. Sorriu levemente, tentando disfarçar o tremor que agora transparecia pela silhueta do vestido. Como poderei ter certeza de que não estas zombando? Provo-o, se assim o desejares, respondeu com firmeza de voz. Peço-a em casamento a seu pai nesse instante. Estás louco, retrucou com um tom de espanto na voz. E tu? Correspondes-me o amor? O silêncio reinou entre eles, não conseguiu pronunciar palavra. Apenas um rubor de faces acentuou as palavras daquele silêncio. Hesitava, pois não sabia se confiava o segredo de seu amor. Temeu. Desta feita, foi ele quem falou: Amas-me, estou certo! Leio-o em teus olhos. Ela acenou com a cabeça. Os olhares falaram tantas coisas. Pactos foram selados. Era madrugada alta quando a carruagem entrou no pátio que dava acesso ao alpendre de sua casa. A luz do luar irradiava como que anunciando prenúncios de novas temporadas por aquelas paragens. Após tomar a benção do pai, fechou-se no quarto. Girou a chave na fechadura e deixou-se ficar encostada na madeira da porta, não queria interromper os próprios pensamentos. Recordava-se do inesperado reencontro, das valsas bailadas e dos diálogos mudos travados na hora da despedida. Esgotada pelas emoções vividas, tirou o vestido, dobrou-o com esmero, acariciou o veludo escarlate e, por fim, o acomodou numa das poltronas postadas perto do toucador. Depois daquela noite, o pedido de casamento foi realizado com as pompas que a nobreza da moça exigia. Desta vez, o vestido escarlate ficou esquecido num canto, substituído por um longo vestido branco, com direito a mesma madame Gertrudes no labor do coser. Pérolas, rendas francesas e botões em flor, tudo cuidadosamente selecionado. O traje perfeito para a cerimônia a ser celebrada. Era o mesmo salão, mas, desta vez, os convidados aguardavam a bela donzela surgir na entrada, pois era ela a homenageada da noite. Trajava o longo vestido branco cerzido para o evento. A face vinha envolta por delicado véu e o ramalhete de noiva suspenso em uma das mãos. O coração a galope, fazendo o braço paterno fremir com o tremor de seu corpo. Surgiu, enfim, na entrada. As flores do campo enfeitavam as fileiras de bancos, as fitas e as rendas dispostas sacramentavam a marcha nupcial. No lugar apropriado, o noivo à espera. Estava se sentindo esplêndido naquela noite. É minha, só minha, pensava a todo instante. E como está linda! - dizia consigo. Horas depois empurrou com os cotovelos a porta do aposento de núpcias, a noiva aconchegada em seus braços. Com delicadeza, depositou-a no leito. A porta se fechou. No interior do aposento, lá estava ele. Disfarçado em um canto. Foi testemunha das juras de amor, juras aquecidas pelas primeiras carícias que os conduziram às recâmaras de fragrâncias desejáveis. Nada lhe escapou. Ruborizou-se um pouco mais, é verdade, mas o fato passou imperceptível. A madrugada sempre solitária, esteve acompanhada por longo tempo. E, por isso, amuou-se ao ter que ceder lugar aos primeiros raios da alvorada. Queria ficar, foi obrigada a partir. Esteve o tempo todo no mesmo lugar, não se mexeu nem por um instante. Não podia distrair os amantes. Deixou-se ficar ao lado do toucador, pendurado num cabideiro, já que seria solicitado para ocasião matutina. Fora, como já se disse, testemunha de tudo. Esperava. Discreto, apesar da indiscrição. Além disso, não era preciso ponderar. A manhã despertou de vez. Raios de sol luminosos fizeram gracejos no veludo escarlate do vestido.
Regiane Reis



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