sábado, 23 de agosto de 2008

O DONO DA BOLA
(Versão Dois)

Era o dono da bola.
E não só da bola como do campo, do jogo de camisas, de tudo, enfim.
Nos finais de todas as tardes, lá estavam eles todos, no campinho de terra conhecido por pequeno coliseu, aguardando pelo jogo de futebol. Chamar o que jogavam de futebol era uma daquelas hipérboles suntuosas. Um bando de guris de um lado, um bando de curumins do outro, e a inocente bola sendo atirada de um lado para o outro a base de caneladas e patadas, em meio a uma algazarra demoníaca. O que se via, freqüentemente, eram algumas canelas roxas e uma exaustão de xingos e blasfêmias sem precedentes.
O certo é que o cara era um chato, mas o dono da bola. E essa “qualidade futebolística” que lhe foi conferida pelo seu poder econômico, fazia-o ser escolhido por primeiro, a maior de todas as honras entre a gurizada. E isto, era a maldição do time em que caia, afinal, o cara era o maior “perna-de-pau” que a pequena cidade havia conhecido desde a sua fundação. Seu jogo era baseado em “vivas são João” na área, sua posição predileta era a banheira e, quase sempre, para não dizer todas as vezes, errava os gols, por mais feitos que estivessem. Arre! Era um grosso!!! E, não havia a menor possibilidade de reclamar, de apresentar uma crítica a menor que fosse, até mesmo os narizes torcidos eram por ele investigado e, se identificasse uma censura ao seu lance infortuito (era assim que se justificava, com esta palavra que ninguém sabia o que era!!!) pronto, o coitado estava eliminado da partida e, de quando em quando, alguém ficava um bom período exilado no banco de reservas, esquecido das partidas, por todos e por ele, principalmente, o pequeno ditador.
Era um sujeito execrável, todos o detestavam. Um cara entupido de empáfia que acreditava ser o centro do universo e que tudo e todos orbitavam ao seu redor. Conviver com ele era quase impossível, esta magia somente era conseguida graças ao encantamento da bola. Porque a bola era a musa dos sonhos de todos os guris. Ela era sonhada, desejada, amada por todos. Para eles, a pequena redonda era a linda princesa que tinha o ingrato destino de viver prisioneira no castelo do bruxo. Mas, o que fazer? Era ele o seu dono e, desta forma, o proprietário de seus sonhos, de seus desejos, de seus destinos. Ele dizia a hora para tudo, ele quem escolhia os times, quem ganharia, quem perderia, sobre ele repousava a felicidade de todos os petizes da pequena cidade. Que triste maldição esta, pensavam, viver sob o jugo de um ditador, do dono da única bola da cidade?
Num dia qualquer dois times degladiavam-se fervorosamente na pequena arena romana. As coisas transcorriam como sempre. O time contrário do déspota, já havia tido dois gols perfeitos cancelados, um pênalti claro a seu favor não marcado, e tomado dois tentos de penalidade máxima que foram apontadas por ele em situações impossíveis de serem assinaladas. Foi tão embaraçador que até mesmo o time dele ficou constrangido. Mas este dia, que nasceu para ser igual a todos os outros, iria se tornar diferente, único, singular. Todas as maldições, acreditem, nascem para encontrar seu final. Não existe noite mais negra que não sucumba ao primeiro raio de sol. A alforria destes guris veio de uma forma insólita e não dá para saber se o resultado lhes trouxe por completo a felicidade. O sorriso de agora pode ser a lágrima de amanhã e/ou vice-versa. A felicidade é difícil de ser detectada e mesmo enquanto guris, dominados pela sua sabedoria, ela pode passar despercebida numa dobra do destino.
Num lance casual de jogo, um guri chutou a bola, um chute forte e poderoso que raspou a trave adversária e foi para a rua, indo parar numa grade cheia de ferros e setas retorcidas na casa em frente.
Foi demais para a bola. Ela gritou uma única vez e o som de sua voz ecoou num estouro. Todos eles gritaram ao mesmo tempo: “Não!” Pegaram-na como se dezenas de romeus tomassem nas mãos uma Julieta ainda delirante, num ultimo suspiro de vida. As lágrimas de seus olhos desciam misturadas ao suor e ao pó do rosto formando uma máscara horrenda e sofrida.
No meio deste teatro de horror alguém se levantou, pegou sua bicicleta e partiu. Foi seguido por outro, e outro, mais outro, por todos. O Dono da bola pediu para que ficassem, gritou, exigiu, implorou, mas todos foram embora, definitivamente. Ele ficou lá sozinho, segurando o cadáver murcho da “Julieta” nas mãos e esta, sem vida, havia perdido o encantamento sobre todos os outros. Ele atirou-a ao chão com fúria e xingando a tudo e a todos entrou dentro de sua casa, solitário, como sempre esteve. Alguém, que ficou desapercebido por ali, agachou-se devagar e tomou a bola nas mãos com um carinho exagerado. Olhou para ela, e sua lágrima cristalina molhou o couro impermeabilizado. Colocou ela na garupa da bicicleta e partiu, como se a levasse para praticar ritos fúnebres em sua honra. Ele se perguntava como seria o dia de amanhã, sem a bola e achou-se por um breve instante triste. Depois, lembrou-se do rosto do pequeno déspota, de sua tirania e de sua chatice incontrolável e não conseguiu esconder uma gargalhada que nasceu do fundo de seu peito. Estamos livres, pensou, estamos todos livres! Amanhã seria outro dia e alguma solução seria encontrada, pensou enquanto sumia na distância. Por ora, era comemorar o fim da tirania, o reino de ditadura havia acabado, como, afinal, todos os reinos absolutistas um dia acabam!

2 comentários:

Anônimo disse...

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Anônimo disse...

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