quarta-feira, 4 de junho de 2008

O GURI E O CIRCO


Em meu tempo de guri, petiz, morei numa pequena cidade, dessas empoeiradas, sonolentas, de gente na varanda ao ocaso, perdidas no acaso. Nesta cidade, como em outras tantas tais, a vida passa devagar, despercebida e, naqueles tempos, relógio era algo um tanto quanto sem utilidade. O tempo, este oceano implacável, era medido pelas alvoradas e pelos crepúsculos, hora de acordar...hora de dormir.... As estações eram ansiadas, mais pelos seus prazeres inaptos do que pelo hábito moderno e arraigado que possuímos em contar o tempo de forma aritmética, juntando os segundos aos minutos, ambos às horas, colocando-o nesta algibeira salaz que é esta necessidade urbana que nos sujeitamos, e nos deixamos corromper por ela.
Em algum momento da minha meninice, chegou a cidade um circo, um pequeno circo mambembe. Recordo-me da rotina quebrada na pequena urbe. O som das buzinas misturaram-se aos gritos infantis. Um velho alto-falante berrava convites e “merchindising” sobre as maravilhas do circo. Recordo-me, sem muito esforço, de dois velhos cães que saltavam compulsoriamente por entre um elo, obrigados pelo anseio da recompensa imediata. Um palhaço, roupa velha, grandes sapatos, face pintada, tentava caminhar em meio a avalanche de braços infantis que degladiavam-se pelas balas que distribuía, sem muita fartura. Os velhos caminhões incomodavam (disseram isso depois, muito depois!!!) com seus rugidos ferozes. A lona, mágica lona, gasta pelo uso constante me deixou enlevado, extasiado. Na verdade, nem percebi uma meia dúzia de grandes remendos, feitos aqui e ali, com algum desespero, liberta tentativa de recuperá-la, ainda que a fria realidade insistia em se mostrar,exigindo uma nova aquisição; uma aposentadoria para a velha lona cansada.
A noite de estréia, ansiosamente aguardada, se revelou com um céu de estrelas cintilantes e uma bela lua envolta por um halo de felicidade no céu encoberto com o negro manto noturno. Estava na primeira fila. Todas as expectativas do mundo, vestido com o mais belo dos sorrisos. E o espetáculo começou. Ri com os palhaços, aplaudi o manjado show de mágica, admirei o trabalho dos trapezistas, cantei com os cantores amadores. No momento das dançarinas apresentarem-se, em trajes sumários da época que, comparados aos de hoje, se poderia dizer que elas vestiam fardas. O palco ficou pequeno, diante do furor da platéia, sobretudo a masculina. As belas moças foram alvos de ovações, aplausos e alguns, mais exaltados, mandavam beijos e gritavam piadinhas de mau-gosto, rechaçadas com a indiferença das belas moças. Ao final da apresentação, um locutor entrou sorridente no palco, teceu um breve bate-papo com as dançarinas e, apontando para a primeira ala, infestada de guris, convidou três deles para subir e oscular a face das bailarinas.
Um destes felizardos era eu...
Não posso falar que fui tomado pelo pânico. Minha meninice desconhecia esta espécie de emoção. A pureza de um guri não pode estar inserida dentro de um contexto de conceito marcado pela literalidade, pela etmologia. As emoções de um guri são reais, puras, naturais e têm sua gênese dentro do coração, e o que vem do coração é sincero. Não pode haver pecado na sinceridade, pelo menos, não na sinceridade de um guri.
Enfim, me vi nesta inédita e inusitada situação.
Minha face ainda virgem para beijos que não fossem os maternais, ruborizou-se. Não sabia o que fazer, não havia sido preparado para beijos alheios aos maternos. Não conhecia essa forma de manifestação de carinho, entre estranhos, e em público. Qual não poderia ser minha resposta, que senão a negativa; a recusa pela exploração ao desconhecido; a fuga, movido pela inibição.
Hoje, do satélite da distância temporal, analiso esta situação, este fragmento em minha vida e me arrependo de algumas atitudes.
Arrependo-me pela minha negativa.
Arrependo-me pela minha recusa, pela minha inércia, pela falta de curiosidade em explorar o desconhecido;
Arrependo-me pela minha inibição.
Arrependo-me pelo beijo que não dei...
Todos estes são arrependimentos que, intrinsecamente, absorvo e os elimino com relativa facilidade.
O arrependimento maior, aquele que fica e que me incomoda, é aquela certeza inexorável de que nos deixamos mudar com o tempo, melhoramos em algumas coisas e pioramos na maioria delas. Sabe, outras faces, outros lábios foram beijados pelos meus e a falta daquele ósculo não mudou decisivamente minha vida. Porém, aquele não, aquela negativa, dita resoluta em meio a rubores, gaguejos e sorrisos me faz falta.
Arrependo-me de não ter combatido o tempo, em ter dito não as alterações que o destino e as vicissitudes produziram em minha pessoa.
Arrependo-me, sem ter a real mensuração de meu pecado, de não mais possuir a pureza e a sinceridade daquele guri que um dia fui e que com o terrorismo do cotidiano moderno, deixei de ser...

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