... Viviam duas mulheres
de meia idade para cima, cuja existência era ficarem à calçada, ambas sentadas
em deliciosas cadeiras de fio vendo o dia passar, todos os dias.
Refestelavam-se logo
pela manhã, sentinelas dos acontecimentos de toda a rua, atentas para todos os
fatos, capturando os mínimos episódios e os registrando em espaço curto de
memória de pouca duração alojada bem pertinho da língua. De tão próximo ficava,
invariavelmente, toda essa memória escorregava para o precipício da língua e
caia no mundo produzindo variada gama de prejuízos.
Possuíam ambas as
mulheres requintado e sortidos artefatos para captura de informação que,
absolutamente nada, com ênfase aguda nesse nada, escapava dessas sofisticadas
máquinas de produzir mexericos.
Algumas coisas até eram
verdade, mas quando absorvidas e depuradas por elas, ao serem regurgitadas
vinham com alguns acréscimos elaborados por essas mentes criativas. Até mesmo o
que era apenas aparência, muito distante de um fato concreto, elas pegavam
essas mentiras nuas e as vestiam desmazeladamente com um fraque puído de
verdade.
Num dia qualquer, sol no
zênite, ambas recostadas sob a sombra de uma frondosa mangueira, uma delas, a
de maior idade, teve um mal súbito, olhou para a amiga, mão no peito, olhos
escancarados numa surpresa ignorante, caiu da cadeira para a calçada, nesse
breve tempo a vida escapando de seu corpo, a morte lhe chegou arrombando todas as
portas: infarto fulminante.
A outra nada entendeu.
Olhou para toda a cena sem compreender ou oferecendo ação do que fazer. Elas
sempre tiveram uma solução pronta para todas as coisas, quando todas as coisas
eram nas vidas dos outros. Agora, quando o acontecimento lhe acenava sua mão
pesada, não conseguia resposta. Na vida elas sempre foram espectadoras, ficavam
na platéia vendo o espetáculo de outrem, jamais foram protagonistas.
Alguém que passava ligou
193, tudo foi mero protocolo. Ela já havia partido na viagem que ninguém quer
fazer, mas que todos farão um dia.
No velório a amiga mais
nova ficou do lado do esquife todo o tempo. Não derramou uma lágrima, sequer
exalou um suspiro mais triste. Parecia alheia e absorta e se houve lamentos por
sua parte não foram percebidos.
Somente levantou-se de
sua cadeira para seguir o féretro que começou ali em sua sala e terminou com o caixão
depositado dentro de uma gulosa boca de cova.
Chegou à casa montada no
mesmo silêncio, dormiu o resto da tarde e toda a noite que se seguiu.
N’outro dia, bem de
manhã, saiu para a calçada como sempre fazia, montou acampamento: duas cadeiras
de fio, garrafa térmica com um café forte.
Tomou o primeiro enorme
gole com grande satisfação, encheu a xícara novamente e a estendeu para o lado,
absorta, dando de cara com a cadeira de fio vazia. Vazia... Nada...
Olhou demoradamente para
o vácuo à sua frente, e, de repente, entendeu tudo. Entendeu tudo...
Levantou-se, recolheu
tudo para dentro, foi para dentro de sua casa, sentou-se na sala bem onde o
esquife fora depositado algumas horas antes e então chorou... chorou...
chorou... pensava consigo mesmo e ninguém mais, pois que não havia: E agora? O
que seria da vida?
Escutou um portão bater
lá fora, na vizinhança, e correu para ver o que era. Para algumas pessoas,
antigos vícios são impossíveis de largar.
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