sexta-feira, 14 de agosto de 2015

QUASE NO FIM DA RUA...



... Viviam duas mulheres de meia idade para cima, cuja existência era ficarem à calçada, ambas sentadas em deliciosas cadeiras de fio vendo o dia passar, todos os dias.
Refestelavam-se logo pela manhã, sentinelas dos acontecimentos de toda a rua, atentas para todos os fatos, capturando os mínimos episódios e os registrando em espaço curto de memória de pouca duração alojada bem pertinho da língua. De tão próximo ficava, invariavelmente, toda essa memória escorregava para o precipício da língua e caia no mundo produzindo variada gama de prejuízos.
Possuíam ambas as mulheres requintado e sortidos artefatos para captura de informação que, absolutamente nada, com ênfase aguda nesse nada, escapava dessas sofisticadas máquinas de produzir mexericos.
Algumas coisas até eram verdade, mas quando absorvidas e depuradas por elas, ao serem regurgitadas vinham com alguns acréscimos elaborados por essas mentes criativas. Até mesmo o que era apenas aparência, muito distante de um fato concreto, elas pegavam essas mentiras nuas e as vestiam desmazeladamente com um fraque puído de verdade.
Num dia qualquer, sol no zênite, ambas recostadas sob a sombra de uma frondosa mangueira, uma delas, a de maior idade, teve um mal súbito, olhou para a amiga, mão no peito, olhos escancarados numa surpresa ignorante, caiu da cadeira para a calçada, nesse breve tempo a vida escapando de seu corpo, a morte lhe chegou arrombando todas as portas: infarto fulminante.
A outra nada entendeu. Olhou para toda a cena sem compreender ou oferecendo ação do que fazer. Elas sempre tiveram uma solução pronta para todas as coisas, quando todas as coisas eram nas vidas dos outros. Agora, quando o acontecimento lhe acenava sua mão pesada, não conseguia resposta. Na vida elas sempre foram espectadoras, ficavam na platéia vendo o espetáculo de outrem, jamais foram protagonistas.
Alguém que passava ligou 193, tudo foi mero protocolo. Ela já havia partido na viagem que ninguém quer fazer, mas que todos farão um dia.
No velório a amiga mais nova ficou do lado do esquife todo o tempo. Não derramou uma lágrima, sequer exalou um suspiro mais triste. Parecia alheia e absorta e se houve lamentos por sua parte não foram percebidos.
Somente levantou-se de sua cadeira para seguir o féretro que começou ali em sua sala e terminou com o caixão depositado dentro de uma gulosa boca de cova.
Chegou à casa montada no mesmo silêncio, dormiu o resto da tarde e toda a noite que se seguiu.
N’outro dia, bem de manhã, saiu para a calçada como sempre fazia, montou acampamento: duas cadeiras de fio, garrafa térmica com um café forte.
Tomou o primeiro enorme gole com grande satisfação, encheu a xícara novamente e a estendeu para o lado, absorta, dando de cara com a cadeira de fio vazia. Vazia... Nada...
Olhou demoradamente para o vácuo à sua frente, e, de repente, entendeu tudo. Entendeu tudo...
Levantou-se, recolheu tudo para dentro, foi para dentro de sua casa, sentou-se na sala bem onde o esquife fora depositado algumas horas antes e então chorou... chorou... chorou... pensava consigo mesmo e ninguém mais, pois que não havia: E agora? O que seria da vida?
Escutou um portão bater lá fora, na vizinhança, e correu para ver o que era. Para algumas pessoas, antigos vícios são impossíveis de largar.

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