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segunda-feira, 2 de setembro de 2019

DEPOIS DO EXÍLIO...

          
          Durante o inverno ela não apareceu...
Provavelmente a família a deixou recolhida dentro de casa, protegida do frio. Gripes e seus primos maus podem ser fatais na idade dela, já avançada em janeiros.
Hoje eu passei, como sempre, e olhei para a sua poltrona na varanda, onde ela costuma descansar nas manhãs embaixo de um sol sossegado, desses que gostam de acariciar a gente; os mais carrancudos, falando sobre os sóis, aparecem somente mais tarde e estes vivem irritados.
Cumprimentei com a alegria de sempre.
Seu cabelo parecia mais branco.
Sua pele parecia mais branca.
Mais alvo do que tudo isso foi o sorriso que me devolveu.
“Deus te abençoe, senhora!”
Ela olhou como que surpresa, poderia ter me esquecido enquanto esteve no exílio forçado pelo frio.
“Amém!”
E sorriu...
Não me esqueceu...
Soube disso, pelo sorriso.
Quis parar e falar que estava com saudades.
Mas não tenho toda essa intimidade.
Nossos contatos são assim mesmo, de passagem, rápidos, possuem a duração do tempo de um sorriso; não vivem mais do que um suspiro de uma saudade morta pelo olhar de quem se queria ver; ainda assim, são puros, cristalinos e tão verdadeiros que parecemos marcar a hora de nos ver todas as manhãs, quando subo para a academia e ela está em seu banho de sol matinal.
Nunca gostei de invernos... sua ausência forçada somente me trouxe mais um motivo para detestar essa estação do ano cinza e bolorenta.
Quando me afastei... Ia mais feliz... Ela ainda está por aqui a me encantar os dias com seu sorriso e sua expressão meiga e delicada.
Quando voltei... ela não mais estava lá... já havia se recolhido para o interior da casa, o sol já mostrava sua carranca e minha amiga não gosta de rostos ranzinzas.
Sorri para mim mesmo.... Sem problemas... amanhã seria um novo dia e ela, certamente, estaria lá...
Quem sabe... quem sabe... tomo coragem e puxo até um dedo de prosa... Amizades começam com sorrisos e trocas de gentilezas, mas elas se erguem sobre poderosas pernas somente quando energizadas por algumas boas conversas e relacionamento pessoal.
Segui em frente, a vida me chamava como sempre, olhei uma última vez para sua poltrona vazia e abençoei minha amiga, mesmo que de longe, sabendo que meu Deus tudo escuta, tudo sabe e alcança todos os lugares.
- Pai querido, abençoe-a neste dia...
E ficou em meu coração uma certeza de que ela estava bem.

terça-feira, 26 de março de 2019

CARROS QUE RUGEM



A estrada ensina muitas lições.
A estrada nos mostra muitas coisas.
Contudo, exige-se experiência para que, ao mesmo tempo que tenhas a atenção e o respeito necessário que a estrada exige, consigas captar dela as epifanias que ela tem para mostrar.
Dias desses, montado na minha 150, quando ia para o trabalho, vi um pequeno rebanho de pintainhos no meio da estrada.
Os enxerguei já de longe, atento que vinha.
Apertei poderosamente a buzina e o ronco da corneta espantou os bichinhos para o acostamento e além dele.
Que faziam estes no meio da estrada?
Imerso em meus pensamentos, um carro passou ao meu lado em grande velocidade, urrando ferocidade enquanto devorava distâncias.
Pelo retrovisor vi os pintainhos retornando, pareciam perdidos, sem rumo, desconectados.
Logo a frente, vi o corpo sem vida de uma galinha.
Atropelada.
Um carro feroz havia devorado algo mais que distâncias...
Entendi o que acontecia com os pintainhos...
Entendi o porquê de estarem perdidos...
Não entendiam o porquê de a mãe deles não se levantar, não mais vir até eles para afaga-los; cacarejar alguma coisa, um ensino, uma exortação.
Eles ficaram lá, percebi, na beira da estrada, olhando para a mãe e para toda a parte, buscando entender o que acontecia...
Minha moto já me levava longe, ela também, ainda que em menor proporção, devorava distâncias...
Eu já não era mais o mesmo.
Estava triste com o destino dos pintainhos.
A mamãe deles jamais retornaria...
A estrada realmente nos ensina muitas coisas, algumas delas, nos deixa profundamente tristes.
O corpo da galinha ficou para trás, uma pasta carnosa no escuro chão de uma estrada cruel que não respeita a vida selvagem e domesticada que nasce e cresce ao lado de suas margens.
A estrada só conhece a si mesma e os veículos que são seus senhores.

terça-feira, 4 de setembro de 2018

ALIMENTOS PARA A ALMA



Nestes dias de frio intenso, não a vi...
Ela ficou recolhida, esquentando o corpo cansado de dias no calor do recôndito do lar.
Hoje o sol saiu, deu a cara tímida depois de tantos dias fora. Apareceu como se tivesse envergonhado de deixar todo o povo mergulhado no cinza dos dias frios.
Junto com o sol, ela apareceu.
Colocaram a sua poltrona de costas para a rua, para que o sol da manhã tocasse o seu corpo de frente, essa carícia (convenhamos!) é mesmo deliciosa.
Eu passei, rápido.
Do lado dela, uma senhora também já entrada em dias, falava de coisas e mais coisas, ela parecia ouvir cansada, mais entretida com os toques abrasadores dos raios do sol.
Eu a cumprimentei como faço todos os dias.
Ela não se voltou, e nem poderia. A posição da poltrona a impedia.
Reconheceu-me, sei que sim, senti no tom da sua voz e na urgência da resposta.
Ficou em mim uma vontade enorme de ver o seu sorriso. Ele é tão lindo. Não importa nossa idade, sorrisos são sempre viçosos como a juventude. O dela guarda o frescor de uma brisa de verão e o cheiro de uma tarde de primavera.
Já ia sumindo da vista da casa, quando de repente, a senhora ao seu lado se virou para mim, parecia aborrecida por ter incomodado seu monólogo.
Essa senhora sorriu. Um sorriso lindo. Mas não era desta, nada daquilo era mesmo desta... O sorriso desta senhora, percebi imediatamente, era um reflexo do sorriso dela... dela para mim.
Sei que a alma possui alimentos mais vigorosos e nutritivos como oração e leitura da Bíblia, mas, sorrisos são um delicioso acompanhamento.

terça-feira, 14 de agosto de 2018

O BRILHO DA FELICIDADE


(ou o SABOR DA VIDA, parte 2)

Fazia dias que eu não a via.
Senti falta dela este tempo todo.
Saudades é um ácido que corroí o nosso sossego.
Houve dias que imaginei coisas... as afugentei rapidamente e coloquei um espantalho feito com esperança para espantar os corvos das más sugestões.
Hoje foi diferente, graças a Deus por isso.
Passei e ela estava lá, sentada em sua confortável poltrona, as pernas enroladas em uma manta de algodão e o sol tocando o seu corpo cheio de dias.
Estava sonolenta.
Sei disso, porque passei e dei o “bom dia!” e ela não me respondeu – quando falei “Deus a abençoe!” – Vi que ela me procurou com o olhar, mas eu já tinha passado.
Entre mim e ela é tudo muito veloz.
Nossa história é uma passagem.
Nossos diálogos são feitos de protocolos sociais e algumas bênçãos que derramamos um para o outro (a melhor parte de nossa biografia).
Entretanto, criou-se um carinho e isso é real.
Eu o sinto de verdade, como se fosse palpável.
Posso sentir o seu perfume no ar, ainda que não consiga descrever o aroma que exala.
Testemunhei essa verdade hoje, na volta da academia.
Quando passei eu a olhei de soslaio.
Estava do mesmo jeito quando passei na ida.
Ao seu lado, outra senhora confabulava com ela antigas histórias, novas histórias.
Quando ela me viu, seu rosto brilhou.
Não é arrogância minha, sei disso porque esse brilho na verdade era meu, sua face era um espelho da minha. Quando vi que seus olhos buscavam os meus tudo em mim irradiou uma alegria e uma felicidade que fez meu ser resplandecer.
É assim mesmo que acontece, felicidade faz a gente brilhar.
Ela falou comigo desta vez:
- Já está de volta? E sorriu um sorriso lindo.
- Sim, por hoje acabou...
Ela sorriu com a alma.
Eu sorri com o coração.
Foi o jeito de dizer que temos estima um pelo outro.
Não nos conhecemos, não somos nada, simplesmente, nasceu em nós um carinho que faz desejar o melhor para o outro.
Isso não é de nós, não existe qualquer auto exaltação aqui, isso é dom de Deus.
- Deus te abençoe! Assim me despedi.
Ela disse: “Amém! ”.
Segui, sentindo o seu sorriso queimando minhas costas, queimava muito mais meu coração.

quarta-feira, 25 de abril de 2018

O SABOR DA VIDA



Todos os dias saía pela manhã em direção da academia.
Passava em frente a uma casa onde um casal de idosos tomava o sol das manhãs.
Notava-se neles a cumplicidade que se constrói dentro dos muitos anos de convivência solidária, olhar para um, era como perceber o outro, como se o envelhecer juntos houvesse construído no outro a imagem do primeiro.
Esta é a melhor maneira de envelhecer – juntos!
Esta arte os dois pareciam dominar como poucos.
Ele passava e os olhava de uma forma muito especial.
Todos os dias era um ritual passageiro e ligeiro.
A vida é mesmo acelerada.
Olhava para ambos, que retribuíam o olhar de expectativa que o passante lhes dirigia.
Havia no homem que passava uma alegria e uma coisa boa que eles próprios não conseguiam explicar.
Para que explicar?
Existem coisas que são melhores quando não merecem e não respeitam definições acadêmicas – estas coisas foram feitas apenas para serem sentidas, assim elas são apenas absorvidas pelo coração que é sensível e que está atento para as epifanias da vida.
O homem passava e lhes dizia um bom dia que vinha de mãos dadas com um Deus vos abençoe.
Eles retribuíam com um amém e quando iam dizer mais alguma coisa, o homem já havia passado.
Ele passava rápido – a juventude é urgente, pensavam.
Para eles a urgência era tolice.
Faziam poucas coisas e as coisas que faziam eram sentidas, catalogadas, todas elas, como coisas importantes de seu dia. Assim, tudo ganhava um sabor diferente, um sentido distinto, viver prestando atenção na vida, mesmo que de uma forma muito simples (e lenta) se tornava algo emocionante.
A juventude é esquecida. Ela não entende disso.
Depois que ele passava, eles se levantavam e adentravam em sua casa.
O sol amigo já começava a ficar zangado e o aconchego do lar se tornava mais convidativo. Sombras também tem seu valor. Quando se envelhece isso fica muito claro, tudo tem o seu tempo.
Eles entravam e aguardavam o novo dia. Sabiam que o homem viria.
E para o passante, que se ia desapercebido do bem que esparramava, ficava no seu coração a alegria de ver os dois, ali todos os dias, um frente ao outro, conversando das coisas antigas que lapidaram sua história.
Enquanto pensava isso, um pensamento sombrio entrou nesse solar de meditações radiantes.
Nem sempre as sombras têm valor...
Um dia, o pensamento sinistro sugeriu, eles não estarão mais lá...
Afastou aos trancos e barrancos tal ideia.
Eles estão lá agora e é isso que importa.
Devemos viver o agora porque o amanhã não nos pertence.
Quando esse dia chegar, pensou, entenderei que a vida é um doce sonho que passa e o gosto que ela deixa é de saudades.

sábado, 26 de agosto de 2017

A NOITE EM QUE SONHEI COM KAFKA


Acordei em meu castelo todo suado enrolado num lençol de cetim.
Estranho, não tenho lençóis de cetim...
Isso mesmo... estava tão de boa que lençóis de algodão se transformavam no mais puro cetim.
Fiquei olhando o teto.
Dormindo acordado.
Lembrei do sonho que tive na madrugada,
Logo depois que a coruja caçadora deu um bote na rua,
Uma barata boêmia acreditou que poderia dar umas voltas,
E se deu mal.
Corujas não dormem de touca.
Sonhei com Kafka. Simples assim, direto no assunto assim.
E como não poderia deixar de ser,
O sonho foi bem doidão.
Tudo em Kafka era onírico,
Realidade e fantasia se misturavam.
A única coisa que era de verdade em Kafka
Eram seus textos excelentes.
Kafka foi um dos grandes, um dos grandes.
Lembrei que era final de semana.
Pensei, vou fazer nada não, ficar daquele jeito.
Colocar os pés para cima
Tomar um suco de laranja misturado com outra fruta
E me fartar de preguiça.
Talvez escreva um texto, se uma ideia vir a minha cabeça.
Se não vier, escreverei qualquer coisa mesmo.
Quem sabe.... no final, algo se salve.
Quem sabe nem tenha final...
Não quero mesmo é saber de relógios.
Nada que me lembre que o tempo exista.
Cuspirei na cara do tempo neste dia...
Isso... vou gargalhar em sua face...
Pelo menos um dia na vida eu vou mandar em mim mesmo.
Serei o senhor de mim mesmo neste dia,
Que uma barata boêmia perdeu a sua vida
Precocemente na calçada de casa,
Assassinada por uma coruja esfomeada.
Neste dia em que lençóis de algodão
Metamorfosearam-se em cetim puro.
Exatamente neste dia que Kafka me visitou
Em um sonho atrapalhado que teve início,
E nunca chegou ao fim.
De repente o celular tocou: alarme!
Peguei o aparelho pronto para desliga-lo...
Uia! Hoje é segunda-feira...
Peguei a farda, o coturno,
Subi em minha moto
Corri para o trabalho.
Ao bater da porta,
Ouvi o tempo badalar horas
(fora de hora)
Num relógio grande e velho
Pendurada numa parede igualmente velha
Gargalhando,
Zombando da minha cara...

quarta-feira, 7 de dezembro de 2016

QUANDO AS PRIMAVERAS CHEGAM...


Já faz algum tempo que não escrevo nada.
Essa esterilidade momentânea não é rara e os motivos podem ser os mais diversos, entretanto, não irei acariciar nenhum deles neste dia, minha atenção abraçará a história que sobe neste palco branco, história que é admirável por natureza.
Todos os motivos se tornam esquecidos quando a gente aprende a colocar nossos olhos nas belas coisas da vida, assim se fabrica a poesia no viver, os poetas mais extraordinários são os sábios, aqueles que sabem como olhar as coisas todas em sua volta.
Porque se eu não souber olhar, a cruz será apenas madeiro, jamais sacrifício de Deus por amor ao homem.
Se eu não souber olhar, a salvação terá que ter um preço a pagar e nunca será graça, apenas graça.
Se eu não souber olhar, o outono será apenas a estação das folhas, nunca a expectativa da primavera.
Se eu não souber olhar, letras serão apenas rabiscos em uma folha, jamais palavras.
O que torna esta história mais interessante é que ela não me chegou por meio do olhar de poeta. Ela me foi abençoada através de um ouvido atento. Gosto de ouvir as pessoas, me comunicar com elas, saber o que pensam sobre a cruz, como enxergam a salvação, enfim, saber o que são para elas outonos e primaveras.
Um homem contou-me estes fatos acerca de sua própria mãe que aos 73 anos ainda não sabia ler. Letras para essa senhora eram outonos, nunca foi primavera. Para quem sabe ler, as palavras  são flores oferecidas num buque de texto; para quem o ler é um universo desconhecido, palavras são apenas folhas dispersas no chão do papel.
Um dia, sua esposa, iluminada pela poesia da vida, tomou uma cartilha qualquer e untou-a com boa vontade e doses generosas de amor e dedicação e começou a alfabetizar a sogra. O dia que a velha senhora descobriu o “A” foi glorioso; o “I” foi ainda mais especial – o I a lembrou da sua igreja.
Com muita perseverança e carinho as letras foram mostrando suas faces à velha senhora e ela as foi conhecendo pelo nome e se lhe tornando intimas amigas.
Um dia, quando começou os ajuntamentos das letras, ela conheceu o êxtase – enfim, era apresentada as palavras.
No dia em que aprendeu a escrever seu nome, ela chorou.
A maior revelação de sua vida, contou para o filho, foi o dia em que conseguiu ler João 3.16 por sua própria conta – finalmente entendia o que era o amor absoluto.
O apogeu foi no banco, quando foi renovar seus papéis de aposentadoria. A atendente que já a conhecia, retirou de uma gaveta uma velha e suja almofada onde, por tantas e tantas vezes ela esmagará o dedão. Em vez disso, solicitou uma caneta e, para espanto e alegria da moça, assinou seu nome.
Naquele dia, a senhora sentiu-se gente de verdade e desde então leu tudo o que pode até o dia de sua morte, quatro anos atrás.
As coisas são mesmo assim...
A vida é mesmo assim...
Alguns olhares quando colocados sobre as palavras são apenas outonos.
Alguns olhares, quando sabiamente treinados, sobre as palavras são jardins de flores nas primaveras.
Aquela senhora na maior parte de sua vida conheceu apenas outonos, até que um dia a poesia a visitou por meio de sua nora. Então, e somente então, conheceu a primavera da leitura; experimentou a poesia da transformação de sua vida, aprendeu definitivamente a ler o mundo com seus próprios olhos.


terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

ELOGIO ÀS MARMITAS


Não existe utensílio mais nobre do que a marmita.
Ela confere ao seu portador a melhor dignidade.
Trabalhadores usam marmitas.
Sem querer dizer que, quem não usa marmita não é trabalhador.
A questão é que ela é um símbolo, um totem de sacrifício humano em produzir e construir.
Além disso existe outra questão, para mim mais importante, raramente marmitas são preparadas pela mesma pessoa que a irá usar, quem faz esse afazer é sempre outro, outro que derrama durante esse trabalho todo um sentimento  de alguém que cuida e ama; de alguém que se preocupa com o próximo; marmitas também são sinônimos de amor e solidariedade.
A maioria das pessoas vê marmitas com desdém.
Não conseguem enxergar nela o seu real valor. Não percebem que ela está sempre em seu lugar desconfortável, longe dos lugares nobres da cozinha e quando convocada apresenta-se para o trabalho sempre com o mais branco sorriso. Marmitas não têm preguiça, nem reclamam de nada, elas amam servir ao seu senhor e faz disso uma vocação despejando o melhor de si.
Marmitas sabem que, depois de tudo, depois que forem usadas muitas vezes com piadas humilhantes sobre elas, seu destino será retornar para o mesmo limbo, um universo onde habita o esquecimento.
Elas não se importam com isso, aprenderam a viver com o pouco que possuem esses raros momentos de protagonismo onde seu senhor desfila com elas de mãos dadas pelas ruas, praças, avenidas e empresas da cidade. Nessa hora elas são felizes, se sentem importantes.
Oh, marmitas! O que todos nós temos feito a vocês?
Eu não tenho nada melhor para lhes oferecer, como vocês sou pequeno e frágil, mas ainda que tudo isso seja pouco, lhes dou o meu reconhecimento pelo seu valor e nobreza.
Voces são singulares e poderosas, queridas marmitas! Saibam disso! Não deixem ninguém lhes convencer do contrário, o contrário é mentira.
E entre todas vocês, existe uma que especialmente cumprimento. E esta história aconteceu muito tempo atrás e me foi contada pelo meu amor mais lindo. Amor que também usa marmitas. Amo vocês marmitas, vocês cuidam do meu amor.
Esta era uma marmita pertencente a uma criança do campo, que assim como sua marmita também era nobre, digna, valorosa, trabalhadora, e, ainda assim, era humilhada diariamente pelos orgulhosos (tolos!) que acreditavam que a gordura saturada da cantina da escola lhes premiava ostentação e superioridade.
Um dia, esse grupo de tolos orgulhosos jogou a marmita dessa criança no chão e todos viram a comida se espalhando pelo frio chão da escola enquanto que a marmita rolava estrondosamente escadaria abaixo.
As lagrimas de vergonha da criança misturaram-se as lagrimas de escárnio dos ricos debochados.
O quadro pintado parecia de Salvador Dali.
De um lado, a marmita humilhada; do outro, os lanches de cantina exaltados.
Isso não é para mim, não quero conhecer esse mundo.
Mundo que prefere os indiferentes e frios lanches de cantina ao calor sentimental de uma marmita.
Sei e somente sei que precisamos de mais marmitas.
As pessoas necessitam delas, urgente.
Quanto a criança, ela sobreviveu, lembrem-se que tinha gente que enchia sua marmita todos os dias e essa mesma gente a protegeu e a amou, e ela cresceu,  se tornou um pai de família, foi produtivo para a sociedade e se tornou um servo do Senhor.
Os tolos orgulhosos??? Ah! Esses outros eram apenas lanches de cantina, desses que se compram em qualquer lugar...

sábado, 23 de janeiro de 2016

EMERALDO, O ZÉ


Existem coisas que aproximam.
Existem coisas que distanciam.
Conheci o Zé da Chalana do rio Paraguai num final de tarde qualquer do verão corumbaense. Era final de ano e ele iria fazer a ultima viagem do dia, nos acolheu com a mesma energia, vivacidade e simpatia como se fosse a primeira excursão.
Havia um sorriso sempre presente escondido em sua face, estes sorrisos que não se apresentam cheio de dentes, e sim, que ficam pregados nos rostos com os fortes cravos da simpatia. Estes nunca saem, não importa o que aconteça. Sorrisos com dentes são frágeis demais, qualquer coisa os fazem sumir para uma terra longínqua onde se exilam e dificilmente saem de lá. Terra estranha. O sorriso do Zé era uma rocha inexpugnável em sua rosada face.
A mulher do Zé é a Dona Lú.
Era ela quem ia para o meio do povo fazer ás vezes de mestre de cerimônia distribuindo galanteios; gentileza sempre foi a melhor propaganda do Zé.
Iniciada a viagem tudo era muito exuberante, a natureza do pantanal chama a atenção pela sua riqueza na fauna e na flora, tudo isso tendo como moldura uma paisagem magnifica. Deus é um poeta, sem dúvidas.
Não desviemos nossa atenção nos atrativos da paisagem e voltemos para nossa narrativa.
O Zé não nasceu José.
O Zé nasceu Emeraldo.
Ele se tornou Zé por um acaso do destino.
Chegou um dia cheio de sonhos do interior de São Paulo para tentar a sorte no pantanal, após alguns anos de trabalho adquiriu uma chalana.
As coisas não começaram bem, Emeraldo trabalhava muito, mas o sucesso não se aproximava dele. Ele tinha tudo pronto, e sabia bem disso. Mas o pavio da sorte jamais era aceso, assim o sucesso não estourava.
Num dia de rotina alguém que não conhecia Emeraldo enxergou em Emeraldo um Zé. Outro alguém escutou a conversa do Zé e se aproximou, papo vai, papo vem, estas pessoas encantaram-se com a simpatia do Zé e saíram espalhando Corumbá afora as delicias da chalana.
No mesmo instante, Emeraldo entendeu tudo e acendeu o pavio da sorte.
Enterrou com pás generosas de esquecimento o Emeraldo e pariu o Zé.
Emeraldo distanciava as pessoas.
O Zé não, o Zé as convidava para afinidades, aproximava todas elas de si como moscas em mel, as amabilidades e as gentilezas do Zé eram ingredientes fáceis para fabricar amizades... e clientes.
É certo que a chalana ter aparecido no inicio de uma novela de sucesso ajudou, mas Zé sempre duvidou se o sucesso midiático teria vindo se sua barca tivesse o nome de Emeraldo. Até a barca gostava mais do Zé do que do Emeraldo.
Emeraldo distanciava mesmo as pessoas.
O Zé aproximava.
Quando o passeio terminou e fomos embora, lembrávamos de jacarés preguiçosos na tarde pantaneira e de gaivotas pescando; também vinha na memória o ocaso que se deitava preguiçosamente sobre o leito do rio Paraguai; o que realmente ficava protuberante em nosso encanto era a simpatia do Zé, o Zé que nasceu Emeraldo.
Só que Emeraldo distanciava as pessoas, e o Zé queria estar perto delas, falar com elas.
Existem coisas que distanciam.
Existem coisas que aproximam.
Quando a boa vontade encontra as gentilezas obtém-se a fórmula perfeita das afinidades, essa goma que une as pessoas. Zé descobriu isso naturalmente, estava nele, ele somente não sabia disso quando era Emeraldo, tudo se fez claro quando se tornou Zé.
Afinidade é bom para os negócios, muito melhor para os relacionamentos.
Posso estar equivocado, a gente se engana em muitas coisas. No que tange aos nomes de todas as gentes nada se apresenta contra um, outro ou aquele nome – neste aspecto, Emeraldo e Zé se equivalem. Nomes de pessoas são apenas nomes, não tem força para construir uma biografia, o inverso é que é verdadeiro – são os homens com suas ações, atitudes e seu olhar sobre o mundo em que vivem é que lapidam seus nomes no diamante da história.
Nisto Zé sempre foi diferente de Emeraldo.
Emeraldo distanciava as pessoas.
Zé as aproximava.
Definitivamente, a humanidade necessita de mais Zés.


sábado, 12 de setembro de 2015

HOJE SERIA TEU ANIVERSÁRIO...




Não sou muito de acariciar o passado.
Não sou de ficar abrindo este velho e empoeirado baú e de lá arrancar seu grande rosário de boas e más histórias.
Não acredito mais no passado.
Tudo o que é realmente meu, já escrevi isso  um dia n’outro lugar, é esta prateleira de segundo do armário das horas.
É no agora que eu vivo.
É no presente que eu posso mudar minha existência e trilhar novos caminhos.
Como sorrir com gargalhadas já gastas?
Vou chorar sempre as dores de ontem, sabendo que o amanhã trará lagrimas mais cristalinas para irrigar sofrimentos frescos como a novidade de um novo dia?
Cada mal terá sempre seu dia. Nada mais.
Hoje seria o seu aniversário...
Lembrei-me disso sem querer.
Deixei a imaginação brincar, por um pouquinho.
Que bolo e guloseimas servirias?
Quantos presentes ganharias?
Sei que convidarias a todos, a todos mesmo, sem esquecer ninguém.
Espalharias sorrisos e risadas como quem atira flores.
Entregarias pratos generosos consciente dos elogios todos que receberias. Tinhas mãos de anjo na cozinha, minha querida!
O perfume de todas as flores que receberias ao seu próprio se misturaria, e a gente ali, a te olhar, buscando qual aroma é flor, buscando qual fragrância é Silvia.
Ai... Ai... hoje seria o seu aniversário...
Odeio passado, minha amada, odeio.
Costumo flertar com o presente e ignorar também o futuro.
Mas hoje... hoje seria o seu aniversário...
O que já foi enterro numa cova funda de esquecimento.
O que agora vivo transformo em esperança.
Com esperança avisto o futuro, que nunca foi meu, mas por este novo olhar te enxergo, Silvia!
Sei que é lá que estás.
Sei que é lá que te reverei novamente, esquecido de aniversários, a eternidade nada entende disso...
Breve, Silvia!
Breve, Silvia!
Será num agora que te encontrarei, querida, quando JESUS voltar... num futuro próximo!