sexta-feira, 3 de maio de 2024

EQUIPE MULTIDISCIPLINAR

 

Muito tempo atrás que já se perde na memória até dos mais antigos, existiu um pavilhão que o distinguiu pelos seus cuidados exacerbados com a disciplina do lugar.

Era algo inacreditável para uma cadeia daquele porte.

Encima da disciplina da polícia, que naqueles tempos era muito rígida, os internos colocavam a sua própria e, pasmem senhores, ninguém, absolutamente nenhum dos presos do lugar escorregava na obediência...

... e estamos a falar de bandidos, alguns de alta periculosidade e acostumadas ao mundo do crime e aos sofrimentos da cadeia, mas, dentro daquele pavilhão se adequavam em fina sintonia ao regramento imposto pelo ambiente.

Eu nunca me enganei com eles!

Ali ninguém era (e nunca foi) santo. A rígida disciplina era uma estratégia recheada de alguma sabedoria aleijada que tirava a atenção e os olhares da polícia de sobre o lugar – a fórmula era quase matemática –  sem problemas, polícia longe; com problemas, polícia perto.

Assim, diante de tal equação que se transformou em um lema, o voz do lugar organizou uma equipe de profissionais competentes multidisciplinares que somente se apresentavam quando se faziam exigidos os seus serviços – estas ocasiões apareciam quando algum preso, de alguma forma, apresentava-se na grade de segurança para incomodar a polícia – então, estes competentes profissionais escalados a dedo pela liderança do pavilhão entravam em cena despejando excelência e profissionalismo inigualáveis no desempenho de suas funções.

A formatação dessa equipe, reconhece-se, foi um achado, um daqueles golpes de sorte que a vida raramente oferta. Qual a chance de encontrar todos esses valorosos operários do saber juntos, ao mesmo tempo, no mesmo lugar? Quase nenhuma... mas nesta época, conseguiu-se esta façanha graças a visão do líder do pavilhão, um homem a frente de seu tempo.

A equipe, se ainda me lembro, tinha alguns terapeutas ocupacionais, psicólogos, psiquiatras, um fonoaudiólogo que ensinava aos coitados com pouca dicção a falar a língua do lugar, entre outros que a memória falha me faz esquecer.

Sei que quando eram acionados, se aproximavam com uma calma franciscana do preso que estava dando problemas, o relações públicas (a equipe também possuía um) convidava num sussurro delicado para que o indisciplinado o acompanhasse, o abraçava com um carinho quase exagerado passando o braço num gesto afável pelo pescoço do reeducando e o levava para uma cela que servia as vezes de consultório.

Algumas vezes, raras vezes, o preso indisciplinado tentava argumentar mas o relações públicas (somente ele falava) os outros da equipe somente observavam, dizia: Calma! Vamos conversar, vamos conversar, vamos resolver tudo lá dentro...

(Lá dentro era o famoso consultório...)

Que trabalho excepcional!

O convite, a entonação da voz que passava segurança para o preso que seria atendido, as palavras cuidadosamente escolhidas em frases quase que poéticas, a forma do abraço, tudo era extraído de uma perfeita didática construída aos labores de anos de cadeia e estudos arqueológicos e sociais, uma performance digna de ser estudada em universidades e que eu muito parcamente tento registrar – meu testemunho não faz jus a esses profissionais, reconheço e me desculpo.

Quando o indisciplinado entrava na cela (ops! consultório) a porta se fechava e a terapia começava, aí sobressalta outra qualidade dessa gente singular – odiavam a exposição desnecessária, detestavam a publicidade, o anonimato era o seu segredo, sua realização pessoal e seu prazer era bem realizar o seu trabalho.

Nunca se soube, pelo menos até onde eu conheça, que houve um preso submetido a estas terapias que retornou para dar problema... reincidência com essa gente, não existia.

O sistema deveria aprender com eles....

terça-feira, 23 de janeiro de 2024

O PREGADOR

 


Todos diziam na cadeia que aquele preso não era certo...

Certo aqui aponta para problemas mentais...

Todas as manhãs, antes da troca do plantão, antes mesmo da realização do confere geral, colava seu rosto na boqueta de sua cela e orava para Deus e todo mundo, isso não sendo força de expressão.

Aos domingos, nos dias de visitas, vestia um terno que havia ganho e que deveria ser uns dois números maiores que ele e saia com sua Bíblia para o solário, andava por aqui, andava por ali, entretido consigo mesmo em meio à multidão de internos e externos que se misturavam nas caminhadas.

De repente, iniciava um sermão, pregava alto como se o céu devesse escutar, falava sobre arrependimento de pecados, salvação e do sacrifício de Jesus pela humanidade.

Pregava direitinho...

Mas, como não era certo, segundo a teoria em voga na cadeia, pouca gente o escutava.

Ele sabia disso...

Não se importava...

Arrancava da memória falha, aqui e ali, alguns versículos bíblicos bem pertinentes com o sermão e seguia em frente em seus alertas escatológicos: Jesus está voltando! Arrependam-se!

Naquele dia, em especial, um policial penal pegou-se a prestar atenção nele e em sua pregação no deserto árido da cadeia – ele estava sozinho, sozinho em meio à multidão que caminhava entretida com as coisas da carne.

A uma certa altura de sua prédica, mandou um questionamento que serviu como retórica: “Sei que vocês pensam que sou louco...” Deu uma pausa e olhou para a multidão que passava, em seguida respondeu a ele mesmo. “Sou louco por Jesus!”

O policial entretido com o sermão do pregador, pegou-se a perguntar-se: “Será que esse preso é louco mesmo? ”

A pergunta ficou no ar, flutuando, esvaindo-se no vento, esquecida de uma resposta.

Então, levantou-se para os afazeres rotineiros e sua alma respondeu:

“Louco ou não, nesta tarde, ele é o homem mais lúcido desta cadeia. Jesus está mesmo voltando...”